terça-feira, 31 de março de 2009

Memórias de Café I - Promessas de amor eterno, leva-as o tempo...

Acordei bem cedo, um olho mais aberto que o outro, vi a janela entreaberta…Mexi os pés, estou vivo! Fiz a minha rotina habitual e fui para Braga!
Como habitualmente faço, fui tomar café…perdi-me nos meus pensamentos…
Promessas? Que promessas poderei eu fazer ao longo de toda a vida? Que estranho quebra-cabeças me envolveu.
Fazer promessas de amor eterno, que crueldade! Crueldade, pois, toma-nos o momento presente. Ficava a pensar em tudo o que teria que fazer para que uma eternidade fosse edificada e não entrasse em decadência. Senti-me angustiado. Tudo pode mudar de um dia para o outro: impérios levam séculos a atingir o seu auge, mas rápido caem, uma árvore leva décadas a crescer mas rápido é abatida.
Decidi então nunca fazer uma promessa de amor eterno. Que besta vos pareço, não?
Mas a verdade é que um amor eterno não se promete, caminha-se para ele, passo a passo. São as pequenas coisas de vida que o fortalecem, são aquelas conversas sérias ou de definhar que aumentam a cumplicidade, é a partilha de sentimentos que gera a empatia, são aqueles abraços únicos, os sorrisos e os olhares que nos fazem suspirar…Por estes fortes motivos, apenas prometo sinceridade, verdade, fidelidade e aproveitar o momento presente. É isto, sim, que não leva ao arrependimento dilacerante!
O café estava frio já, era hora de ir para as aulas…

António Campos Soares

segunda-feira, 30 de março de 2009

Onde estão os olhos de Inês?

Das muitas histórias que por aí vão passando, de boca em boca, ouvi uma, há uns tempos, sobre a povoação onde estava a pensar comprar uma casa de campo. Confesso que das vezes seguintes que lá fui mantive sempre uma atitude de observação e cepticismo relativamente a todos os pormenores que me rodeavam.
Conta-se que, nos montes que cercavam essa pequena povoação, algumas pessoas foram dadas como desaparecidas e apenas as encontravam longos tempos depois, já em estado de avançada decomposição e todas elas apresentando um peculiar e macabro pormenor. Ainda hoje, quando recordo essas descrições, sinto calafrios.
Era uma pequena povoação que vivia da lavoura, habitada apenas por duas famílias. A família Alves gozava de enormes possessões que lhe garantiam uma vida abastada. Tinham uma linda filha jovem, tez clara, longos cabelos negros e uns lindos olhos de um azul vivo, a bela Inês, menina dos olhos de Afonso, filho mais velho da família Oliveira. Os Oliveira eram uma família com cinco filhos varões. Viviam do trabalho da terra, eram os trabalhadores da grande propriedade Alves.
Afonso e Inês, desde tenra idade mantinham uma relação única. Eram como “unha e carne”. Os bosques que rodeavam a povoação foram o recreio de tantas brincadeiras de infância e, mais recentemente, o palco dos seus primeiros encontros amorosos de uma pueril paixão. Fora junto a um pequeno riacho, ladeado por uma densa vegetação e coberto por copas de carvalhos centenários, que deram o seu primeiro ósculo. Inês vestia um longo vestido branco. Afonso havia lá aparecido ao pôr-do-sol, como era habitual nos dias de Primavera e de Verão. Aquele era o seu refúgio.
O Outono aproximava-se, deixando aquele romântico lugar em repouso até aos primeiros dias soalheiros da próxima Primavera. Era uma sexta-feira e Afonso tardava em aparecer. Estranhando a ausência de Afonso, Inês decidiu voltar a casa. O sol não hesitava em despedir-se do outro lado da colina, dando um tom laranja e rosado a um céu que prometia ser estrelado.
Ao sair do bosque rumo a casa, algo não estava bem. Um grande alarido acompanhava uma coluna de fumo negro vindo das casas. Inês corre quanto pode até se deparar com um grupo de salteadores. Tudo havia sido saqueado, as colheitas queimadas, o melhor gado alinhado e pronto a ser levado. Os cadáveres dos pequenos varões Oliveira jaziam num monte, alimentando uma fogueira. Sua mãe jazia nua no chão. A senhora Oliveira deu o seu último grito de desespero depois de o seu violador a ter degolado. Seu pai estava enforcado ao lado do senhor Oliveira e, por fim, Afonso, o seu amor, já pouco dele restava. Havia sido morto para alimentar os cães de guerra esfomeados que os salteadores afagavam.
Seus lindos olhos dissolviam-se em lágrimas com todo aquele cenário, com todo aquele inferno. Estava prostrada por terra, a dor havia sugado todas as suas forças. O capataz do grupo, lentamente vai a seu encontro mas já nada lhe capta a atenção.
- Mestre, eis o acréscimo da sua parte do saque! – Diz um dos membros, limpando o sangue da sua espada.
- Preparem tudo p’ra que partamos dentro de duas horas! – Disse o mestre. Era assim que lhe chamavam. Era um homem alto, com uma enorme cicatriz forjada no rosto. Usava uma velha armadura negra com ornamentos macabros. No seu pescoço pendia uma caveira de prata.
Prendeu Inês ao seu cavalo e arrastou a inocente e pura jovem até ao bosque, até ao refúgio do amor. Uma vez lá, tratou de amarrá-la a um dos carvalhos, assegurando-se que a infeliz não escaparia. Da sua algibeira tira um conjunto de instrumentos, de tortura. Cozeu-lhe os olhos lentamente, saboreando o seu momento de prazer.
Inês chorava lágrimas de sangue, não consigo imaginar a sua dor, a sua raiva, o seu ódio, a vontade de vingança, apoderando-se de cada gota que restava ainda do seu sangue…
O mestre contemplava a sua arte, movendo a cabeça para a observar de vários ângulos. Rasgou-lhe o vestido. Inês estava nua, a virgem estava desprotegida por um acto depravado. O mestre prepara-se e, numa atitude animalesca, desflora a pobre Inês que geme com a dor provocada pela brutalidade, enquanto o seu violador desfruta de um prazer louco, como um feroz fornicador. Numa das mãos ostentava um punhal que ia deslizando sobre Inês, provocando profundo golpes que ia lambendo com a sua língua bifurcada.
Estava terminado o seu ritual, o mestre recolhe os seus haveres, corta uma trança de Inês e parte, deixando-a prostrada naquele solo, em tempos, cenário de maravilhosos momentos. O inferno havia emergido em detrimento de um paraíso construído por românticos sonhadores.
Anoitecera, Inês despertou. Era noite, mas nem com o brilhar da lua cheia ela poderia ver, suas pálpebras permaneciam cosidas. Apalpando o solo encontrou o seu vestido rasgado, que enrolou no seu corpo. Caminhou no vazio durante horas. Mas para onde? Naquele momento já nada conhecia… os seus últimos passos foram dados em direcção a uma ravina, a Ravina dos Corvos.
O corpo de Inês foi encontrado sete dias depois por um grupo de caçadores que por ali tentava a sua sorte. As pálpebras continuavam cosidas, no entanto, os olhos não estavam lá.
Dos salteadores não mais falaram…Mas quanto a Inês, bem, a sua inocência e pureza, converteram-se em ódio, raiva e vingança. Vários caçadores e lenhadores foram dados como desaparecidos e encontrados na ravina dos Corvos, com as pálpebras cosidas, desprovidos dos seus olhos.
Apenas há um relato de um monge eremita que escapou, era um estudioso de lendas e mitos que corria Portugal buscando novas histórias para compilar. Inês vestida de branco e olhos cozidos havia-lhe aparecido.
- Senhor, qual o caminho p’ra casa, por favor? Tenho frio e está tão escuro aqui… – Pergunta o espectro de Inês.
O monge sem conseguir responder, apenas aponta em direcção à povoação onde Inês havia vivido e veste-lhe um velho manto que trazia aos ombros. É então que o espectro desaparece por entre o nevoeiro rasteiro que reinava no bosque…
Mais casos foram relatados…Acredita-se que Inês apenas encontrará descanso quando alguém conseguir encontrar os seus lindos olhos. Onde estarão eles? Terá o salteador recolhido os olhos de Inês como trunfo máximo do seu saque?
Temam Inês…


António Campos Soares

quinta-feira, 26 de março de 2009

Tempo


Tempo, tiempo, temps, time, время, zeit…

Sinal da nossa condição mortal, marca do nosso envelhecimento prematuro, caminho para a insanidade profunda e perdição do alento. Quantos de nós não nos fechamos na nossa masmorra, quando pensamos no tempo ou vemos que aquele segundo, que o ponteiro do relógio arrastou consigo, não volta mais?
Aí começa a tortura, o fulminante descender do machado, a corda que aperta cada vez mais até sufocar completamente, deixando-nos como pêndulos…
Os impérios que criámos, tudo o que edificámos, desvanece, não nos imortalizamos. Rendemo-nos como débeis fracos, deixando o tempo triunfar. Tornamo-nos em frutos em pleno apodrecimento, sem sementes que garantam uma linhagem…
Pensaste todo o dia no futuro e, mesmo quando te deitas no teu leito, só pensas no amanhã.
Quando vives?
Fechas os olhos, dizendo “Até amanhã!”, mas amanhã já não é o teu tempo!
Descansa em paz


António Campos Soares


(Imgem por Quitéria Campos)