domingo, 20 de junho de 2010

...?

Caminhava sozinho na Rua dos Mártires. Era já tarde, mas deixava-me ir lentamente, se me apetecesse parar para olhar, parava o tempo que fosse preciso, não havia nada a perder. Estava cada vez mais consciente da minha condição, a minha partida clama-me cada vez mais alto. Um clamor que nem a surdez profunda, ou a perda dos sentidos, faz cessar. Sem caminhar, a meta arrastava-se para na minha direcção.
Vi um vulto, aproximou-se, foi contra mim.
Um estúpido morcego que me assustou. Mas falou-me…
- Tu, efémero, decadente, miserável, mortal, desejarias, por ventura, ser detentor da imortalidade? – sussurrou a pequena besta, circulando freneticamente à volta da minha cabeça.
Por momentos, julguei estar completamente embriagado, completamente fora de mim, como nunca havia estado, ao ponto de ver e ouvir um morcego falar-me e fazer-me parar.
Não lhe pude responder no momento, comecei-me e rir como um perdido, dando asas a um desalento, a um princípio profundo de demência, mas a criatura mordeu-me, despertando-me daquele transe de insanidade.
- Não são muitas as ocasiões em que ofereço a imortalidade a um reles mortal, no entanto, o teu angustiante clamor, despertou-me. – disse-me num tom ruim.
- De onde raio saíste tu? Imortalidade, a que preço? – rendi-me.
- A primeira questão foi lançada por mim...dentro de três dias aparecer-te-ei de novo . Será o dia da tua escolha! - foram as suas últimas palavras, antes de desaparecer na noite.
Sentei-me no chão.
Toda a minha curta existência tinha implorado por imortalidade, como o eterno romântico desejando morrer num abraço com a sua musa e, finalmente, eu tinha algo…tinha a construção de um diário de um mundo novo a meu pés, poderia reinar, imperar, criar toda a vida. A luxúria e a ostentação não seriam pecados, os vícios não seriam o caminho para o fim…não havia nada a perder!
Fui para casa, adormeci numa poltrona, imbuído nas aspirações que aquela proposta me havia trazido.

Dia 1:

Acordei somente para o almoço, não fui trabalhar. Trabalho, algo que, em breve não seria uma preocupação, a falta de pão não me mataria.
Todos estavam fora, almocei sozinho. Comi como se não houvesse amanhã. No fim, bebi até cair. Fiquei completamente fora de mim, dormi toda a tarde. Acordei com os meus pais a entrarem no quarto. A dor de cabeça desatinou-me e tratei-os mal. Não compreenderam a minha reacção, não tentei conversar.
Saí, porta fora, para o primeiro café que encontrasse, mais um copo e um cigarro. Um atrás do outro. Não havia limites, em breve, nada seria uma mácula, neste meu corpo sujo que seria muito mais do que um estátua que fica na história, eu seria eterno e não imóvel, contaria história pela minha própria boca.
Cheguei a casa completamente arruinado. Deite-me!


Dia 2:

Acordei a meio da tarde, completamente ressacado. Novamente sozinho em casa. Decidi ir comer fora e encontrar amigos, colegas, conhecidos. Ninguém, todos trabalhavam, nem o mais malandro deles parava por ali.
Meti-me de novo em casa, fui para o jardim com tudo o que havia escrito ao longo de anos.
Papel a papel, fui queimando tudo. Não foi suficiente, fui buscar também todas as recordações, de novo, achas na fogueira, enquanto, me embriagava.
“Ficai, ficai em cinzas, que ninguém mais vos conhecerá, não passais de o nada que amanhã não serei” e dançava à volta da fogueira, pisando as brasas, frenético, fazendo escárnio de tudo o que até ali vivera. Os retratos, as palavras, as memórias, iam-se apagando não só nas cinzas.
Caí. Tudo ficou negro à minha volta!

Dia 3:

Acordei ofegante a meio de um pesadelo.
Na praia, as ondas apagavam palavras, rostos, feitos, de todos aqueles que me haviam rodeado. À medida que eram apagados, também não me era possível recordá-los. O meu próprio rosto foi o último que vi. Acordei.
Estava alguém na cabeceira da cama, não consegui logo enxergar, tinha a visão demasiado turva.
Era a minha namorada. A falta de notícias havia feito com que viesse à minha procura. Olhei-me ao espelho, tinha um corte no rosto, da queda, a minha marca de imortalidade e lembrança do seu preço?
Comecei a fraquejar, qual seria o preço a pagar por aquela extravagância?
Não fui capaz de dizer nada. Saí do quarto, de casa!
Enquanto caminhava perdido pelas ruas dos arredores de minha casa, pensava, esmiuçava todas as hipóteses. Apesar de fraquejar, a aspiração continuava entranhada em mim.
Lembrei-me do sonho.
Parei, caía a noite!
Deixei-me cair num banco de jardim, onde adormeci. Acordou-me a maldito morcego!
Tremi, senti-me assombrado, o nervosismo dominava-me…
Ria-se de mim, como de um animal prestes a ser torturado e não ter para onde escapar. No momento de dizer “sim”, quis recordar todos os que me acompanharam, os colos onde fui protegido, os olhares que cruzei, as palavras que me acalmaram, os feitos que me ensinaram…tudo desaparecia lentamente. Já não conseguia recordar o rosto dos meus pais…
Era o preço a pagar…
Acordei com os primeiros raios de sol…apesar das circunstâncias, foi, talvez, o despertar mais tranquilo da minha vida. Corri para casa, ainda estou cá!