terça-feira, 26 de outubro de 2010

Memórias de Café VIII - Despertar violento

07.08.1999

Havia sido mais tarde daquele Verão passada no IPO do Porto. Como nos últimos meses daquele ano era habitual, apanhava o expresso, junto ao Café Central, com a minha avó e lá íamos passara o dia ou a tarde com o meu avô. Ao final da tarde ou à noite, ia-nos buscar o meu pai e a minha mãe.
Naquele dia, o meu avô estava apagado, não falava muito, estava amarelo e com um rosto que imanava tristeza. Todos aqueles tubos afluíam para ele. Eu estava de joelhos ao lado da cama, acariciando-lhe a mão, esperando algumas palavras ou uma história, mas não vinha nada da boca dele. Apenas um olhar perdido e sem brilho que vagueava pela enfermaria.
Era um sábado e jogava o F.C.P. contra o Beira Mar.
Partimos e o meu avô tinha ficado a ver o seu clube jogar, como sempre tinha gostado.
Em casa, depois do jantar, o telefone tocou, parámos todos, imaginámos o pior, mas era ele, pedindo desculpa por não ter falado, disse que nos amava e depois a enfermeira disse também que ele tinha ficado contente por ter visto o seu clube vencer.
Todos se deitaram mais aliviados.

08.08.1999

Às sete da manhã o telefone tocou.
Não me lembro quem atendeu e houve gritos e choro.
Com dez anos e embrulhado em lençóis de sonhos e pueris ilusões, virei-me para o outro lado da cama, fechei os lhos com força e tentei voltar a adormecer a todo o custo. Quis acreditar piamente que era tudo fruto de um pesadelo, como ocorria habitualmente, mas a minha avó irrompeu pelo quarto a chorar, abraçando-me e ouço o meu pai de cabeça baixa, junto à porta “Filho, o teu avô faleceu”. Dissipou-se, então, bruscamente, qualquer réstia de esperança que estivesse ainda adormecida em algum cantinho da cama e chorei, ainda choro...

Ainda hoje continuo, em muitos dos meus momentos de divagação e sonhos despertos, perdido no tempo, entre o século XX e o século XXI, à espera que alguém me acorde de maneira natural de volta para os meus dez anos, no verão de 1999. Até já, avô…

António Campos Soares

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Memórias de Café VII - Há uma necessidade...

Há uma necessidade tremenda de ficar acordado, e marcar os segundos com palavras, as horas com poemas, a noite com criações.

Há uma necessidade enorme de não adormecer, por haver mais um verso para escrever, mais um pensamento para libertar.

Há uma necessidade inquestionável de sentir o frio da noite a entranhar-se corpo adentro, enquanto vagueio, relembrando façanhas de outros tempos, ditando divagações que me mantêm acordado.

Há uma necessidade desmedida de encarar a noite com livros intemporais, em diálogos imaginários com Eça, Camilo, Quental ou mesmo Poe.

Há uma necessidade inviolável de partir, sem destino, sem saber onde verei o amanhecer.

Há uma necessidade calada de dormir, há tanto para fazer, tanto para descobrir e partilhar.

Há uma necessidade extrema de ficar aqui….e escrever até sucumbir à fragilidade humana de cair nos braços de Morfeu.


António Campos Soares

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Memórias de Café VI - Coca-Cola com 7UP


Há pequenas coisas (à partida insignificantes) que nos ficarão para sempre na lembrança. Refiro-me, neste caso, a misturar Coca-Cola com 7Up.
Todos os dias, no final do jantar, saímos. Rua abaixo até ao Café Central.
Perguntava-me se já tinha feito os deveres, principalmente os de matemática e, não raras vezes, perguntava-me a tabuada. Outras vezes perguntava-me as dinastias ou os rios.
Entretanto, chegávamos ao café, cumprimentava as mesmas pessoas que ele, que sempre diziam que eu já estava um homenzinho e perguntavam se já tinha “moça”. Eu teria os meus sete ou oito anitos.
Ficávamos ao balcão. Eu pedia uma Coca-Cola e ele uma 7Up. Mal as bebidas eram postam no balcão, ele fazia questão de misturá-las para que a Coca-Cola não me tirasse o sono e fazia questão de que eu prometesse que não diria ao meu pai o que tínhamos bebido, que deveria dizer, caso o meu pai me perguntasse, que tomei um carioca de limão.
Enquanto eu saboreava a bebida fresca, ele via as chaves do totobola e do totoloto, via-as com os amigos, jogavam em sociedade. Também falavam da passarada e dos cães de caça.
Ao ser nove e meia, pagava e vínhamos nós, rua acima, até casa, numa tentativa de chegarmos antes do meu pai, para que, quando ele chegasse, me visse de pijama vestido, pronto para ir para cama.
Ia para o meu quarto mas acabava por me escapar para dormir com ele. Eu falava muito, aliás, ainda falo e, então, ele dizia-me que o primeiro a adormecer, no dia a seguinte, teria uma Coca-Cola ou uma 7Up. E adormecíamos…
E, assim foi, até ao dia em que lhe foi diagnosticado um cancro que o levou, em cerca de um ano, há cerca de uma década…
Não é que, hoje em dia, goste muito de Coca-Cola com 7Up, mas, de vez em quando, arrisco-me a tragar esse sabor, na ilusão de, quem sabe, abrir os olhos e estar ao balcão do Café Central ao lado do meu avô António.


António Campos Soares

terça-feira, 5 de outubro de 2010

A Gota

Não raras vezes, desejei já ser uma gota de água.

Este desejo realizaria a minha aspiração de imortalidade.

Passaria por vários estados, experimentaria inúmeras sensações, encarnaria os mais antagónicos sentimentos: seria parte de um iceberg, onde algum barco colidiria, ou do bloco de um iglu, conheceria os pólos, veria as auroras boreais, ou então, seria parte de um cubo de gelo na bebida de alguém, em qualquer parte do mundo; fundir-me-ia, percorreria todos os oceanos, veria as mais monstruosas ou delicadas criaturas, seria caudal dum rio, surgiria da nascente mais cristalina, em algum sítio totalmente virgem, mataria a sede, ou poderia até ser ignorado…evaporar-me-ia numa poça, num deserto, ou até do bule de alguém que quis fazer chá…

Que fantástico seria ver o mundo lá de cima, seria como um deus, não pagaria para voar, saberia o que realmente é estar nas nuvens, seria parte de uma, seria parte do sonho e das divagações de alguém, seria desejo de povos e realizaria preces de desespero…

Um dia cairia, de volta para a terra…poderia experimentar a adrenalina de uma tempestade, acompanhado de um relâmpago, dançar com o vento, rasgar o céu e sentir-me dispersar no impacto bruto com o solo. Cairia numa chuva passageira e percorreria um corpo, provocando arrepios causadores de loucura a alguém que me beberia, ou me limparia, seria uma gota de suor num corpo nu acabado de fazer amor.

Seria lágrima de alegria, ou de angústia de alguém que perdeu, seja qual for a sua perda, seria a gota que faria um copo transbordar numa pândega de amigos, seria escarros de insatisfação na mais justa das revoluções, ou parte do plasma de uma gota de sangue derramada em nome da honra…

Poderia ser parte de qualquer ser, racional ou irracional…

Poderia ser livre, poderia ser TUDO!


António Campos Soares

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Memórias de Café V - Relembrar Granada I



Son las cinco de la mañana y en pocas horas entraré en una aula de la facultad para hacer el examen de relaciones internacionales. Estoy estudiando desde que terminé la cena y ahora decidí parar un poco.
Hice café (nada semejante al café portugués) y decidí sentarme a la ventana que está vuelta para una de las calles con más movimiento de Granada, la Calle Pontezuelas. Es una calle que no es muy ancha, flanqueada por todo tipo de tiendas, mí facultad se queda en el otro extremo da la calle.
Me gusta la ciudad, esta mágica ciudad que es tan tranquila pero que nunca se duerme. Siempre se suele escuchar los coches de la Calle Recogidas o de Gran Vía Colón. Siempre hay grupos de personas que pasan en la calle y me saludan, preguntado me si quiero bajar para ir de copas con ellos. Les contesto “Gracias, pero en cinco horas tengo mi último examen”. “¡Qué pena, tío!”, me dicen y siguen hacía alguno bar donde invitan a la vez. He pasado una gran parte de mí tiempo conociendo a personas, haciendo amigos, bebiendo con gente que no conocía, con personas que nunca más las vería, con personas que todavía hablo y las invito a que vengan a mi casa a cenaa o beber unas copas de vino de Oporto o Super Bock…
En pocos días me voy a Portugal definitivamente. No sentí dolor cuando vine, sin embargo la siento cuando pienso en la partida. Hago promesas de volver pronto y nunca digo a nadie “Adiós”, sino “Hasta pronto” o “Hasta luego” y sonrío.
La taza de café está vacía, voy a volver a concentrarme en apuntes que alguien me los prestó para que estudiara para aprobar a la signatura.
Belén, está durmiendo, pues, mañana trabaja, Agnés también estuvo estudiando un poco conmigo pero fue acostarse hace casi dos horas, está cansada con todas las fiestas de despedida y partirá una semana antes que yo parta también y Fray, el perrito, si no está aquí brincando, está durmiendo también…

Três anos depois, relembro tudo como se ainda hoje estivesse naquela janela, ou a tomar aquele café deslavado, mas ainda não voltei lá, continuo a fechar os olhos quando caminho à noite e imagino-me a percorrer a Calle Pontezuelas, enquanto volto para casa…mas estou em dívida, ainda não cumpri o “hasta pronto”, nem o “hasta ahora”…até quando?

(Tres años después, me acuerdo de todo como si todovía estuviera en aquella ventana, o bebiendo café con poco gusto, pero aún no volví allá, sigo cerrando los ojos cuando camino por la noche y me imagino andando en la Calle Pontezuelas, mientras vuelvo a mi casa...pero tengo una deuda, todavía no cumpli el "hasta pronto" ni tanpoco el "hasta ahora"...¿hasta cuándo?

António Campos Soares

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Memórias de café III - Chegada do Outono

Bom dia!
Mais um dia em que não saí de t-shirt de casa, pela manhã, como fiz nos últimos meses… Os dias ameaçam pintar-se com um ligeiro toque de melancolia, que acabará por se alastrar e cobrir toda uma tela.
O céu, com um tom cinza faz com as pessoas andem mais apressadas, mais fugidias, mais frias, mais sós…Encolhem-se, tentado passar nos mais estreitos espaços entre a multidão, muitas vezes chocando com gente conhecida, não esboçando um único sorriso, ou um “Bom dia!”
Peço um leite com chocolate quente e uma tosta, não é muito habitual tomar o pequeno-almoço fora, mas hoje apeteceu-me.
O café está cheio de gente que tenta despertar com o auxílio de um café, a esplanada está montada, mas ninguém opta por ficar por lá. A empregada traz-me o que pedi e eu agradeço, creio que não me ouviu, ou ignorou para não perder o seu tempo, o que não julgo.
Coloco o copo de leite entre as mãos para as aquecer, sinto-as frias, como nos dias de Inverno em que a sala de ensaios se torna numa arca frigorífica e não sinto os dedos macerados, arrastando-se nas cordas do baixo.
Estou sentado numa mesa junto à vitrina, gosto de ver quem passa. Muitas caras conhecidas às quais aceno alegremente, muitas das vezes em vão. De olhos cravados no chão, nem vêem, ou então fingem não ver (provavelmente para não tirarem as mãos dos bolsos para um aceno de retribuição) e eu faço figura de parvo para quem me vê constantemente levantar a mão e ser ignorado. Que me importa?
Nada sabem de mim…Não sabem que reparo quando olham para o telemóvel para não terem que enfrentar alguém, ou quando acendem mais um cigarro porque não sabem o que dizer enquanto estão à conversa e eu continuo a ser o parvo de olhos colados na vitrina!
Finalmente alguém me vê, acena, sorri e volta para trás para entrar no café onde estou. Cumprimenta-me e eu convido a que se sente.
Já não era o único a estar sozinho a uma mesa, tendo como companhia os meus monólogos, as meus pensamentos e observações, ou conversas paralelas que me vão captando a atenção e me fazem reflectir…àsvezes boas, outras vezes origem de dor!
“Dois cafés, por favor!”, pedi…
Falámos, rimos, partilhámos, relembrámos…doeram-me as bochechas de tanto rir!
Ainda que cinza o dia ganhou um tom mais quente, descobri a receita para atrasar o toque amargo da melancolia dos primeiros dias de Outono!


António Campos Soares