segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Músicas para Escrever XXXIV, Epigram - This Is Not Where We Are Supposed to Be


Ele despediu-se, desceu as escadas lentamente e saiu de onde não queria sair e acreditou que ela também não queria que ele saísse. Assim teve que ser – talvez não, não tinha que ter sido assim, pensa hoje! Caminhou rua abaixo, hesitando cada passo, sentia-os pesados como se o chão o agarrasse porque, no fundo, até o chão sabia que ele se movia contra a sua vontade. Antes de virar a esquina olhou novamente para trás, talvez imaginando como seria se não tivesse saído, mas os "ses" são o mais drástico inicio de qualquer pergunta, levam sempre ao arrebatador arrependimento. Não sabia se ela ainda o observava, mas queria acreditar que sim. Bem lá dentro acreditava e sentia-se feliz, explodindo em palpitações.
Dessa vez não se irritou por estar a chuviscar  pelo contrário, desejou que aquela chuva caísse mais intensamente e o molhasse completamente e, num acto de "não quero saber", voltasse para trás com o pretexto de pedir abrigo e não tivesse que ir embora, mas não o fez porque a chuva também não realizou o seu desejo. Continuou, olhando uma derradeira vez, não imaginando nunca que fosse a última, na esperança de ver a sua silhueta espreitar por trás da cortina de alguma das janelas, mas não viu nada.
Chegou ao quarto e pensou deitar-se vestido sobre a cama. A sua roupa detinha a fragrância do espaço dela e, por momentos, perdia a noção do seu quarto e acreditava que, afinal, não teria ido embora mas, quando abria os olhos, via-se novamente no seu cubículo, completamente sozinho. Despiu-se, enfiou-se na cama e quis adormecer depressa. Assim aconteceu.
Dias, noites, semanas, meses, anos passaram...ainda continua à espera e desespera a cada dia, a cada noite, a cada semana, a cada mês, a cada ano.
Nunca mais a viu!
Nunca mais a viu da mesma maneira como quando se despediram naquela noite.
Hoje vive na mesma rua onde tudo aconteceu, numa casa mesmo em frente onde ela vivia, mas ela já não vive ali. Já não sabe onde ela vive, no entanto, todos os dias, antes de se deitar, vem ao jardim e pára a olhar para as janelas onde outrora desejou ver a sua silhueta.




domingo, 30 de dezembro de 2012

Músicas para Escrever XXXIII, Epigram - What's Mine Is Yours


Jazia sozinho no sofá, embrulhando-se numa manta colorida por remendos. Nem nas noites mais frias de Inverno dormia na sua cama. Ficava no sofá da pequena sala com uma porta para a rua e nunca trancava a porta, acreditando que alguém poderia querer entrar para lhe dar algum conforto. A televisão ligada toda a noite para ter algumas companhia e já lhe eram familiares as vozes mais comuns como a voz de alguém próximo que o saúda na abertura do primeiro jornal e lhe deseja boa noite depois das últimas notícias, já que mais ninguém o faz.
A sua amada morrera acamada e havia-se habituado a ocupar o sofá para não perturbar o sono da pessoa que havia amado ao longo de toda a sua vida. Ali ficava e quando, por algum motivo, despertava durante a noite, espreitava pela porta entreaberta do quarto mas rapidamente voltava para o sofá para adormecer e esquecer que sua amada já ali não jazia como ele. A cama que, para ele, não fazia sentido, pelo menos só para ele.
Todas as manhãs, quando acordava, voltava ao quarto para enfrentar a sua dor e ter a certeza da sua solidão, abria a janela e voltava a fazer a cama que ainda guardava duas marcas corporais no colchão.
Nesse noite, decidiu ficar no quarto. Estava cansado das mesmas vozes da televisão que, apesar de o saudarem ou dele se despedirem, apenas lhe traziam notícias de um mundo triste, talvez mais triste do que ele. Adormeceu, ao lado do espaço côncavo da sua amada, para não mais acordar.



sábado, 29 de dezembro de 2012

Músicas para Escrever XXXII, Mono - Halo (II)


NOITE DESAFORTUNADA: Bom dia, ESQUECIMENTO!

(Porque é que a luz do quarto tinha que estar programada para se acender quando toca o despertador? Má ideia para dias como este!)

Não é que, de facto, seja um bom dia, mas então, por que raio, é que digo bom dia ao ESQUECIMENTO e não me calo ou me viro para o outro lado e adormeço de novo e tento, assim, curar esta ressaca de sentimentos? Que mania de cumprimentar tudo e todos e, na maioria das vezes, fazer figura de idiota porque não se é correspondido, como aquele aceno que ninguém vê, ou as palavras que ninguém ouve. Que mania de se acreditar que todos reagirão do mesmo modo que se reage com eles. Tretas!, na maioria das vezes não é porque não vêem, mas sim porque ignoram! Quem é que nunca ignorou um aceno ou desviou o olhar para evitar alguém?

(Por que é que tinha que estar a chover hoje também?)

Espera, já me lembro do porquê de ter dito bom dia:
Quis fazer-me amigo do ESQUECIMENTO para que ele levasse tudo o que tenho no pensamento para bem longe e me fizesse esquecer a quem tinha entregue as minhas MEMÓRIAS. Ontem deitei-me e não consegui sonhar, pelo menos, com não aquilo que necessito e que me ajudaria a encontrar uma realidade que se vai esfumando sem deixar rasto entre as minhas MEMÓRIAS e as imagens desse sonho vão ficando, aos poucos, cada vez mais desfocadas. Mas até o ESQUECIMENTO se esqueceu de mim ou me ignora: acenei-lhe, ensonado, e não reagiu, disse-lhe bom dia, para me fazer ouvir e, nem aí, obtive algo recíproco.

(Será que vale a pena sair da cama hoje? Será?)

O conforto caloroso da cama nesta manhã fria e chuvosa faz com que este cenário se torne num dos melhores remédios para tão agressiva ressaca de sentimentos porque oferece várias hipóteses: hibernação social ou alheamentos através de sonhos, sem termos que ver quem ou aquilo que nos esquece, ou pior ainda, encontrar quem ou aquilo que nos vimos forçados a esquecer sem intervenção voluntária do ESQUECIMENTO.
Se ainda alguém me trouxesse um chá à cama era perfeito. No entanto, há algo que se assemelha a um medo quando penso na hipótese de atravessar a porta do quarto e involuntariamente ver alguém pela janela, ou que esse alguém me veja a mim através dela.  Mas terá que ser, vou à cozinha rapidamente e volto para me enfiar aqui, como um ninja.

A CAMPAINHA!? (Quase deixei cair a chávena do chá!)

Alguém me viu. Não, não! Não pode ter visto! 
Não estou em casa. Deixa-me ficar aqui quieto.

Não, vou lá espreitar em silêncio.

- Abre a porta, sei que estás aí!

Como é que...?

- Sei que estás aí. Dá para ver a tua sombra por baixo da porta?

Eu não disse que deveria temer as janelas? Não diretamente por elas, mas através da luz que entra por elas, acabei por ser visto. Que faço agora?
Deixa-me entrar!

- Bom dia! - (Disse isto outra vez, depois de ceder e abrir a porta.)
- Tens a certeza disso?
- Definitivamente, não!
- Anda cá!
- Não sei se será boa ideia...
- Acredita que é a melhor.
- E se partes de novo?
- Não parto! Anda cá!

Não dei mais passos, deixei-me cair na direção desse alguém que me descobriu e se me ofereceu delicadamente.
E foi assim que vim ter a este estado de quarentena, que eu próprio criei para me proteger!




Músicas para Escrever XXXI, The Best Pessimist - Closeness


Foi o despertar mais angustiante da última temporada de noites mitigadas por pesadelos, no entanto, desenganem-se os que pensam que este angustiante despertar me libertou de um pesadelo. Pelo contrário, foi angustiante porque me despertou de um sonho que quase se tornava realidade, à medida que tudo se ia colorindo. Foi a noite de descanso mais arrebatador depois de tantas noites em que acordei sentido-me afogar sem conseguir vir à superfície e gritar por ajuda.
Esse sonho foi a cura, aliás, não foi, mas seria se não tivesse acordado. Insisto em continuá-lo sempre que me leva para longe a imaginação. E volto ao ponto de partida para esse meu despertar angustiante. Tudo é tão nítido como muitos poucos sonhos que tive até hoje.
Onde foi tudo isto? Onde estava eu?
Tudo me parecia familiar. Eu já vivi ali, seguramente. Conheci todos os espaços e quem lá estava não tinha feições desconhecidas.
Hoje deito-me na esperança de lá voltar e conseguir-me libertar desse rio de esquecimento onde me tenta derrotar o afogamento e nadar até uma margem segura. Então, aí, saberei onde encontrar essa realidade ou utopia, não me fará grande diferença, esperando não chegar demasiado tarde!



quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Músicas para Escrever XXX, Isis - Weight


Quando confrontado com abismos tentadores, que encantam como curandeiros com remédios para algumas dores e opressões, agradeço não me ser possível recorrer a eles. Quando confrontado com o cano do revólver arranhando-me o céu da boca, agradeço que a bala não possa ser disparada disparada. Quando confrontado com a corda bem justa ao pescoço, agradeço que ela se rompa se, por algo motivo, acabar por saltar.
Se saltasse, se disparasse, se me pendurasse ficaria a dor e a opressão por se libertarem e o meu cadáver estilhaçado lá no fundo do precipício, o rosto parcialmente desfigurado, o pescoço com um colar tatuado pela esmagadora força da corda, não teriam libertado nada e apenas perderia o albergue de uma espírito melancólico que vagueia entre várias falésias numa incessante busca de respostas.
E volto ao ponto de partida pelo mesmo caminho que percorri para este fim de curso porque todos nascemos para viver e resistir. O caminho de volta é mais mais sinuoso, ainda que a vida esteja salvaguardada por momentos, que podem ser estendidos, no entanto, o âmago não se cura com remédios passageiros ou antibióticos tomados pela metade. Tudo isso, a seu tempo, apenas fortalece os vírus que destroçam o interior, que já é pouco mais do que um mundo num período pós-apocalíptico. 
Não quero morrer gradualmente, perdendo uma víscera de cada vez, vomitando remorsos, tossindo arrependimentos ensanguentados!



quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Músicas para Escrever XXIX, Mogwai - Christmas Song


Foi mais um dia. Um dia de lareira e chuvas alternadas com luzernas.
Um dia de agudos e graves. Agudos momentos de recordações e graves momentos de moleza num sofá que hesita libertar qualquer um que nele procure conforto para aproveitar algum calor, seja ele vindo da lareira ou humano. Como terá sido o balanço do conforto neste dia?
Eu marquei o meu lugar entre esse sofá e o divagar pelos corredores da casa ou pelo jardim quando a chuva dava tréguas.
Invejei os pássaros em debandada, aproveitando os momentos em que o céu se apresentava limpo. Invejei as nuvens que se moviam, para locais cada vez mais longínquos, amparadas pelo vento. Invejei a chuva pela adrenalina de cada gota em precipitação.
Foi mais um dia e promessas e propagandas humanistas que voltarão novamente, apenas no próximo ano (e espero estar errado). Posso não ter aproveitado devidamente este dia. Talvez porque não aprecie coisas demasiado efémeras, talvez porque prefiro ver o lado bom das pessoas todos os dias e não apenas neste dia que passou, ou nas suas vésperas coloridas por imensas luzinhas e canções imortalizadas  É, de facto, bom que, em algum momentos, este sentimentos de humanismos e humanidade sejam instigados, no entanto, é triste que tenha que haver uma época para fazê-lo. Nem tudo tem que ser tão específico quando se trata de revelar a humanidade que há em cada Ser.




terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Músicas para Escrever XXVIII, God Is an Astronaut - In The Distance Fading


A minha visão está turva. O que está na distância não é mais do que uma aguarela cada vez menos nítida.
Não é só obra do que enche este copo que me faz companhia. Todo o meu rosto está lavado e não é apenas chuva, nem são apenas lágrimas. São dois tipos de gotas ou gotículas unidos, como uma mão que lava a outra, como uma boca que beija a outra, como dois corpos que se unem um ao outro, num abraço ou sobre o deslizar de um lençol. As lágrimas salgam as gotas de chuva e o chão onde caem prova um novo aroma. As gotas de chuva confundem-se com as lágrimas e não é perceptível se choro ou não.
Talvez porque choro à chuva, porque faço dela uma confidente, nunca ninguém me viu a chorar e passo por ser alguém com ventrículos de gelo. Posso limpar os olhos para afastar as lágrimas, ou posso limpá-los porque a chuva me continua a turvar a visão. Ou serão as lágrimas que, ao se formarem, me embaciam os olhos? Ou será o vinho que já não me deixa ver nitidamente?
Não distingo e ainda bem, não quero dissipar esta confusão que não me atormenta. Não me fixo apenas nas lágrimas ou na chuva, na dor ou no frio, nos que partiram ou nos que partirão ou, pior, ainda, nos que vejo partir, quando acontece e não há nada que possa fazer. Estou sozinho porque ninguém veio para a chuva comigo. Porque não quiserem, porque estava frio, porque não se queriam molhar, ou porque não convidei. O problema não terá que estar sempre em apenas uma das partes!
Lágrimas de mágoa, chuva que as vai dissolvendo, dando-me algum conforto. Arrojadas gotas de chuva que me percorrem o corpo, como uma mão fria que me acaricia e arrepia. Não quero levantar-me daqui, não pares chuva, quero continuar a sentir-te. Dissolve a minha mágoa de saber que, mais tarde ou mais cedo, todos os que conheço partem.
Hoje é uma noite de chuva e sinto que o céu chora pelos mesmos motivos que também eu choro, que tu choras, que alguém chorará também...Quando voltar, voltarei apenas de uma circunstância em que andei banalmente à chuva, mas, ainda que encharcado, voltarei mais leve, sem o incomensurável peso das lágrimas soltei e que, pela chuva, foi dissolvido e expiado.




segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Músicas par Escrever XXVII, Ludovico Einaudi - Lady Labyrinth


Flor de laranjeira...Esta fragrância inconfundível que enche todo o espaço onde permaneço.
Se fechar os olhos imagino-me num laranjal florido e a brisa traz-me todas as memórias que me levam a esse vale, entre montanhas, onde reina a serenidade.
Lamento ter partido e ainda mais lamento não saber voltar.
Preciso que essa fragrância não seja passageira e se prolongue. Preciso disso porque já não me bastam as memórias. Preciso do prolongamento dessa fragrância a flor de laranjeira para voltar a esse vale porque há em mim uma necessidade de forjar novas memórias.
Preciso de partir antes que parta também para longe esta fragrância porque com ela partiriam as poucas memórias que restam.
Peço à noite que se continue a acompanhar desta fragrância e, se assim acontecer, em breve partirei.



domingo, 23 de dezembro de 2012

Músicas para Escrever XXVI, Russian Circles - Verses


Ali vai o idiota...!
E riem-se quando o idiota passa e não lhe passam bola porque ele não é perspicaz, não lhe dão hipótese porque ele não sabe fazer nada de jeito. Não lhe dão crédito porque é idiota! E geralmente é isso que se faz com os idiotas!

Aqui está o idiota...!
Falam com ele e não levam nada a sério porque ele não vai a lado nenhum. Cumprimentam-no porque ele se aproxima humildemente para lhes falar. Dão-lhe uma palmadinha sarcástica nas costas e porque o idiota é idiota vai acreditar que isso é um incentivo e vai ficar feliz.
É idiota, pensou que falaram a sério. É idiota, vai-se agarrar a isso. Que idiota!

Ali vai o idiota...!
Acena um "adeus", que idiota, levantam-lhe a mão também quando ele já se virou para a frente e fazem-lhe um mangalho. Que idiota!

E o idiota?
Perguntam numa gargalhada no mesmo sítio onde o viram, onde falaram com ele, onde o gozaram, onde lhe deram um sarcástico incentivo. O idiota? Já nem me lembrava dele.
Já não se ouve falar dele há bastante tempo. Deve estar lá com as coisas idiotas dele!
E riem-se até lhes parar a respiração...e acabam os motivos para rir quando algo está diferente!

Olha! Está ali o idiota!?
É ele?

Olha! Estão ali os idiotas!



sábado, 22 de dezembro de 2012

Músicas para Escrever XXV, God Is an Astronaut - Lost Kingdom


Há um destino que se vai traçando lentamente, sem que se possa fazer frente. O chão vai-se desfazendo como espaços de um tabuleiro de xadrez, que vão caindo quando nos aproximamos. É difícil alcançá-los, ainda mais quando se é Peão e os estreitamentos, incontornavelmente, vão-se alargando cada vez mais, criando um mundo de países com fronteiras cada vez mais difíceis de serem cruzadas. Não esperemos que essas fronteiras se alastrem ainda mais e que o mar vá preenchendo esses estreitamentos, formando ilhas cada vez mais distantes umas das outras e isoladas num imenso azul, onde reinará novamente o medo de velejar. Se isso acontecer, termos que nos esforçar ainda mais porque será necessário criar pontes robustas, que ofereçam estabilidade para quem as quiser cruzar. Não importa se és Rei ou Rainha, terás que te esforçar, ou serás um Rei ou uma Rainha sem reino e perecerás.



sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Músicas para Escrever XXIV, Epigram - Waiting To Wake Up


A cidade jaz tranquila sob um manto de nevoeiro. Afirma-se um silêncio que apenas se delicia perante o cantar de algum pássaro que não descansa para que a noite não fique desamparada. Eu desfruto desses momentos, colhendo inspiração. Não estou só, olhando em redor os contornos de todos esses palcos de lendas, mitos, assombrações ou histórias de pessoas reais.
Quantos serão os que por aí vagueiam em busca de alguém que ouça a sua história e alguma justiça se faça? Quanto os que por aí erram em busca de um lugar? “Quantas casas sem gente e quanta gente sem casa”? Quantos ouvirão também o cantar desse pássaro e se estarão a deleitar ao som desse cântico puro que percorre todas as ruas desertas desta cidade adormecida que, dentro de poucas horas, despertará?
Hoje vou permanecer assim, nesta sintonia, fazendo da noite uma confidente, do cântico desse amável pássaro a banda sonora das histórias que vou criando de cada lugar que vai revelando os seus contornos e das que pessoas que os habita(ra)m. Hoje vou entregar-me a este encantamento e ao que ele quiser partilhar. Onde quer estejas, junta-te a mim. 




quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Músicas para Escrever XXIII, God Is an Astronaut - Golden Sky


O "Ingénuo" era "Ingénuo" porque toda a gente lhe chamava assim, ou se não chamava, pelo menos, pensava. Era o "Ingénuo" porque era diferente. Acreditava em toda a gente, mas não por ser parvo. Gostava de todas as pessoas, convidava-as com tudo o que tinha para fazerem parte da sua vida. Dava o que podia para fazer as pessoas felizes e, muitas vezes, era infeliz porque acabava esquecido. O "Ingénuo" ouviu muitas histórias mas fez parte de muito poucas, não porque não quisesse  mas porque de grande anfitrião passava a ser o convidado a quem os convites nunca chegavam. E, ainda assim, sentia-se feliz quando as pessoas se realizavam, mesmo que as suas pegadas tivessem sido apagadas pelo esquecimento.
Doía-lhe que lhe chamassem o "Ingénuo" mas não desistia. Sempre que era preciso lá estava ele, pronto, feliz, sorrindo, esperando, quando era preciso e voltando a casa sozinho, muitas vezes, ou agindo em anonimato, sabendo que os seus créditos nunca apareceriam no final do filme, ainda que em letras minúsculas.
O "Ingénuo" teve uma morte precoce. Pereceu sozinho, esperando por alguém que nunca apareceu. Ninguém soube da sua morte, ninguém sentiu a sua falta nos momentos que se seguiram. O tempo passou e esse tal sujeito a quem todos chamavam o "Ingénuo" deixou de aparecer quando alguém precisava, então, aí, a sua falta foi sentida e uma mágoa imensa instalou-se no coração das pessoas e todos choraram.




terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Músicas para Escrever XXII, The Best Pessimist - When Time Stood Still


Pega nos teus sonhos, nos teus desejos, nas tuas vontades, nas tuas aspirações. Recolhe as boas memórias, as histórias que te fazem sentir vivo, as imagens que te fazem feliz. Reúne os teus sucessos, as tuas vitórias. Adiciona a isso tudo o que aprendeste, ainda que tenhas sido derrotado a tentar mas, porque tentaste, aprendeste, saíste triunfante ao inverter a situações. Certifica-te que nenhum desgosto, angústia, medo, pessimismo te passou despercebido para não amargurar o momento.
Está?
Coloca tudo bem aconchegado no fornilho e, com um fósforo de esperança, acende o teu cachimbo da paz e, se achares por bem, partilha.



Músicas para Escrever XXI, Aesthesys - Once You're Born You Can No Longer Hide


Para além de toda a matéria que nos compõem, somos também constituídos por vontades, desejos, aspirações e sonhos...ou seríamos espantalhos inanimados onde com sarcasmo a passarada largaria as suas necessidades.
Quando crescemos e a imaginação vai sendo castrada por uma impiedosa sociedade, que tenta impor regras sem sentido, medidas ridículas, e tudo isto desmesuradamente, todas essas vontades, desejos, aspirações e sonhos vão sendo sepultados ou abandonados por nós próprios, que os criámos, que os acolhemos no nosso colo, que os alimentámos e com eles fomos felizes.
Não quero ser parte de uma sociedade que se desresponsabiliza por criar órfãos e órfãs. Sim, órfãos e órfãs, que não têm onde ser acolhidos. Esta sociedade fá-lo abundantemente e colectivamente, como uma epidemia mortífera que vai enegrecendo todos os espaços que outrora tiveram alguma cor e esperança.
Órfãos e órfãs que vagueiam por aqui e por ali, dormindo entras as letras de textos gloriosos do passado, não propriamente tão antigo, sem terem onde encontrar um abrigo para os dias mais agrestes. Vagueiam como fantasmas porque não são feitos de matéria como nós e podem ser eternos e eternas. São muito mais poderosos do que quem os cria e tanta gente insiste em abandonar estas criações. Será medo da nossa pequenez? Pequenos são os que abandonam.
Eu tenho as minhas vontades, os meus desejos, as minhas aspirações, os meus sonhos. Muitos são meus, outros foram adoptados quando os encontrei perdidos pelos sítios e vidas por onde fui passando, outros são ainda partilhados com pessoas que não compactuam com a maldade do abandono e querem continuar a criar, acolher e partilhar. No entanto, o que eu quero mesmo é criar um orfanato para acolher todas as essas vontades, aspirações, desejos e sonhos abandonados, que algum dia significaram muito para alguém, e, quem sabe, devolvê-las a essas mesmas pessoas convertidas, com a certeza de que, desta vez, não haverá um abandono.




segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Músicas para Escrever XX, The Echelon Effect - Distant Desire


Há uma espera que faz desesperar porque esperando não é uma maneira eficaz de alcançar. De tudo o que se quer, quase nada seria atingido se continuasse sentado no limiar deste cais, que saúda o mar, esperando. A única coisa que me esperaria seria um fim de arrependimentos, uma sentença violenta no momento em que se quer encontrar paz, fazendo contas ao que fizemos e ao que inutilmente deixámos de fazer, aconchegado por ilusões de que tudo aconteceria.
Fartei-me de esperar, cansei-me das promessas a longo termo que, como qualquer metal, ainda que precioso, acabam também elas deterioradas, perdendo parte da sua essência, da beleza que algum dia lhes foi atribuída através de um gesto, um olhar, um sorriso, um abraço, uma palavra... Por isso, hoje decidi partir para longe da terra deste limitador esperar.
Busco esse "El Dorado" onde criando, fazendo, sofrendo tudo se alcança. No entanto, faço de uma maneira diferente porque não vou esperando encontrá-lo para recomeçar mas, à medida que o procurao, vou vivendo, partilhando, aprendendo e cumprindo o que prometo porque quando o fim chegar as contas serão certas: não haverá arrependimentos. 




Músicas para Escrever XIX, Black Sabbath - Planet Caravan


Chamavam-lhe "Indigente" e bebia tequila sozinho numa mesa, que passava despercebida a um canto desse bar de tons neutros e luzes foscas. Na ausência de alguém para partilhar uma conversa, bebia olhando-se a um espelho fixo na parede.
O seu dilema era sempre o mesmo: como acabaria aquela conversa com a garrafa de tequila?
Algumas vezes resistia e voltava só e amargurado para casa. Outras vezes, bebia até que o seu reflexo turvo no espelho lhe fosse retribuindo conversas que ele mesmo imaginava e voltava a casa cambaleando. Umas vezes ria, outras vezes chorava e o espelho ria e chorava com ele.
De manhã, a sensação era sempre a mesma. A ilusão desaparecia com o despertar e, afinal, continuava só, dificilmente recordando-se dos diálogos que havia tido com o seu reflexo. A ressaca enchia-o de arrependimentos e prometia não voltar a ter mais dessas conversas, não com uma garrafa de tequila novamente. Mas essas promessas eram esquecidas quando se sentava à mesa e a cadeira ao seu lado continuava vazia. Então, o "Indigente" recorria, mais uma vez, à sua prostitua barata, que levava para casa dentro si até ao dia em que também ela se cansou do "Indigente" e o sufocou enquanto dormia.




sábado, 15 de dezembro de 2012

Músicas para Escrever XVIII, Agnes Obel - Riverside


Naquela noite de finais de Primavera a débil criatura encontrou o seu derradeiro repouso nos espaços das pedras da calçada. A sua queda foi um evento de investiduras desconhecidas, cada vez mais longe do seu ninho caloroso e suave, rodeada por outras criaturas que, na procura de mais conforto, quem sabe, a terão lançado nessa queda rumo a um exterior marcado pela fatalidade de se ser frágil.
Não foram longos os momentos de sofrimento neste seu último repouso. Quando não conhecemos o "desconhecido", muitas vezes, é maior em nós o espanto, a curiosidade, a ingenuidade, do que propriamente o medo, a angústia ou a morte por antecipação e, assim, caiu a criatura contemplando o momento até embater sobre o granito frio. Nunca soubera o que era a dor e foi estranha a sensação da gradual perda dos sentidos até repousar a cabeça no pequeno aglomerado de musgo, deixando-se ali ficar.
Terão passados alguns meses, veio o abrasador calor do Verão, vieram as chuvas do Outono e resta apenas uma esqueleto encolhido, tão aconchegado no ponto onde quatro pedras se encontram, coberto com algumas penas e ainda lá está a almofada de musgo sob o seu crânio.
Sem intervenções alheias, a Natureza proporcionou a essa criatura um túmulo, criando uma obra de arte e, todos os dias, o sol continua a dar um pouco de calor ao que resta dessa criatura, talvez relembrando-a do calor do ninho de onde partiu precocemente.




quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Músicas para Escrever XVII, Epigram - The Beginning Of Anything


O palco estava cheio de músicos e o auditório repleto de gente, que falava, sussurra, ria mas, de repente, quando as primeiras notas do violino soaram, todos desapareceram. Apenas ficou no palco aquela silhueta iluminada por um débil fio de luz, oscilando enquanto acompanhava o movimento do seu arco.
A tela enorme que limitava o final do palco foi ganhando profundidade e viam-se montanhas longínquas, das cadeiras agora vazias foram crescendo árvores ancestrais, o tecto foi-se abrindo dando lugar a um céu limpo e azul, o palco transformou-se numa clareira e dos instrumentos foram desabrochando flores, de todas as cores, feitios e belezas...
Eu estava longe e ao mesmo tempo tão perto, rodeado por todo aquele acontecimento. E aquela silhueta ia tocando e criando mais paisagens das quais nunca sonhei fazer parte e eu era parte dessa melodia.
Quando o arco parou, não houve palmas, mas reinou um silêncio profundo de olhares fixos e perdidos, que procuravam algo mais. Afinal onde estou?
Olho para o chão, de novo o palco de madeira, é agora a minha deixa.





Músicas para Escrever XVI, Collapse Under The Empire - Violet Skies


Todos os humanos foram encaminhados para um enorme anfiteatro, em disposições diferentes e, ainda assim, não foi fácil a tarefa de predispô-los em lugares onde não conhecessem as pessoas que os rodeavam.
Não houve publicidades e o espectáculo preparava-se para começar.
Lentamente os holofotes iluminaram o palco e descortinado o enorme objecto que ocupava a posição central daquele palco: uma ampulheta.
Lentamente a areia ia caindo da âmbula superior para a âmbula inferior.
Sussurros foram-se apoderando da plateia, que se questionava entre si de qual seria o propósito daquele espectáculo. Aos poucos, todos se foram abstraindo daquele objecto que ditava o passar do tempo. E assim que cada grão passava de uma âmbula para outra, uma história era narrada, um desabafo encontrava conforto, um segredo encontrava um novo confidente, um remorso desaparecia, uma lágrima corria, um sorriso era esboçado, um abraço era dado, um beijo era trocado, um desejo de vingança era esquecido, uma reconciliação acontecia, um sonho era partilhado, uma nova esperança nascia. Não era permitido silêncio!
Assim se passaram 24 horas e quando o último grão de areia caiu, ninguém queria partir. A Humanidade estava restaurada!





quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Músicas para Escrever XV, Russian Circles - Praise Be Man


Ei, acorda!
Quando foi a última vez que sonhaste?
Estás a ouvir-me?
Finalmente abriste os olhos. Estás pronto para relembrar-te?
Sim, isso mesmo, quando foi a último vez que sonhaste?
Não estou a falar desse sonho que estavas a ter, nem do que tiveste na noite passada ou na noite antes dessa. Estou a falar-te de sonhos, de sonhares acordado.
Não te lembraste do sonho ou não te lembras da última vez que sonhaste?
Levanta-te! Estás à espera de quê? Não achas que é tempo de te fazeres à vida?
Sonha a sério e faz por não acordar desse sonho até o cumprires e puderes sonhar realizar outro sonho.
Não vão acreditar em ti? Deixa de ser idiota. Por que é que achas que estou aqui? Por que é que achas que acordo todos os dias?
"Afirma com energia o disparate que quiseres, e acabarás por encontrar quem acredite em ti." [1]
Vão se rir de ti? Também se riram de mim e, vê bem, continua a sonhar e a acontecer.
Eu rio-me de ti só de te ver nessa figura ridícula e miserável sem esperança, sem vontade, reduzido a um nada. Vales menos que aquela pedra da calçada em que cuspiste ontem.
Já te lembras da última vez que sonhaste?
Não? Provavelmente não sonhaste verdadeiramente.
Sou louco? Não imaginas o quanto, nem quantos aprovam a sanidade que há em sê-lo.
Levanta-te, faz-te ao mundo, faz-te parte dele, torna-o, cria, inventa, erra tentando, cai, ergue-te, acredita, SONHA! Ou da próxima vez que te acordar será um despertar violento e não virei só.
Vão te chamar maluco?
Deixa lá, que não te incomode mais essa estúpida tendência de te acanhares por trás do típico "o que vão pensar de mim?", já somos muitos a partilhar essa felicidade de não resignar o nosso efémero tempo a uma existência, mas sim a vivê-lo. Ou vives ou morres e estar a amorfo, acomodado, conformado ou apático é o mesmo que assinares a tua própria certidão de óbito.
GET THE FUCK OUT OF YOUR BED!


[1] Virgílio Ferreira




terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Músicas para Escrever XIV, Mono - Halo


Detive-me perante essa árvore de tom vermelho e com pequenas folhas em forma de estrelas. Nesses poucos momentos de liberdade, desejei que aquele fosse o meu céu. Era final de tarde e esperei ansiosamente que a noite não caísse  As folhas oscilavam com o vento. Pedi que começasse a nevar para que aqueles tons avermelhados se realçassem ainda mais, mas não nevou, apesar do frio que me atormentava atormentava. Passei longos minutos a contemplá-la.
Quando partir não quero um epitáfio de granito. Por favor, prometam-me que será uma árvore como esta o meu epitáfio. Deixem que o que restar do meu sangue possa contribui para esse nobre tom que colora as estrelas do céu que quero que seja meu.
A noite foi caindo contra a minha vontade e, quando já pouco era perceptível o tom dessa árvore, quis aproximar-me para colher uma folha, uma única folha, uma recordação desse paraíso edificado sob a copa dessa árvore, que guardaria comigo para contemplar sempre que precisasse de me imaginar num lugar melhor mas não consegui. Assim que dei o primeiro passo esbarrei violentamente na vidraça. Logo me agarraram e tentei novamente acercar-me e bruscamente me deitaram no chão. A minha resistência foi em vão e arrastaram-me para ao meu cubículo, enquanto esperneava e gritava "é ali que quero estar".





segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Músicas para Escrever XIII, Mogwai - End


No dia da morte de cada ser humano, antes de se ir para onde quer que seja que as crenças de cada um orientam e prometem em vida, cada um de nós, sem excepção, após inevitavelmente abandonar a sua vulnerável massa física outrora movida por necessidades, vontades, sentimentos, desejos, aspirações, deveria ser confrontado, de bata e bisturi, com o seu cadáver, talvez ainda quente para que nada passasse em vão.
Seria um momento de verdade, cada um fazer a sua própria autópsia:
quantas memórias terão ficado guardadas no sistema límbico? quantos remorsos e arrependimentos ainda vaguearão por lá? quantas sensações de frio e de calor? quantas vozes e palavras terão escutado ou ignorado os ouvidos? quantos segredos por esses mesmos ouvidos terão entrado?
quantas coisas belas ou angustiantes terão vistos os olhos? quantas lágrimas terão lavado o rosto? quantas fragrâncias terá sentido o nariz?
quantos aromas terá experimentado a língua?
quantas palavras terá proferido a boca? quantas feridas terão curado ou espezinhado essas palavras?
quantas vezes terá batido o coração movido por fortes sentimentos ou quantas vezes terá sido dilacerado? haverá alguma ferida aberta ou tudo estará cicatrizado?
quantos gritos terão soltado os pulmões? gritos de angústia, de raiva ou de exaltação?
quantas vezes se terá o estômago contorcido pelo nervosismo, pela hesitação, pelo medo?
quantas hemorragias internas provocadas por factores daqui e dali?
quantas cicatrizes ornamentarão o corpo e a história a elas associada?
quantos corpos terão tocado as suas mãos? que partes de cada corpo terão percorrido? com que propósito?
quantos quilómetros terão percorrido os pés para alcançar sonhos?
[...]
E, no final, depois de dissecada toda uma vida, aí, sim, seria hora de partir. As crenças estariam mudadas, talvez, um novo destino poderia ser escolhido ou talvez não, mas algum novo tipo de consciência teria sido despertado e, quem sabe, numa outra circunstância haveria vida novamente, diferente.  





sábado, 8 de dezembro de 2012

Músicas para Escrever XII, Agnes Obel - Louretta


Tanta gente passa nestas ruas e eu gostava de fotografá-las a todas. Fotografias colectivas e individuais, discretamente. Ler o rosto e a expressão das pessoas, dia após dia, numa tentativa de aprender algo mais com a humanidade.
Como são os tempos que correm? Que sentimentos encontraria nos inúmeros rostos que preencheriam totalmente as paredes de uma sala?
De um modo geral caminharia também entre elas para que alguém me fizesse mesmo, sem que eu me apercebesse, talvez em ruas de outra cidade. Se me fotografasse a mim mesmo nesse contexto seria uma fingidor, rodeado por tanta gente mas, ao mesmo tempo, sem trocar um palavra ou sorriso, fingindo um bem-estar para evitar questões e pensamentos, ou dissimulando mal-estar carrancudo, cortando qualquer tentativa de aproximação e afecto.
E, eis, que surge essa pessoa feliz, tentando contagiar com sorrisos e com uma tenuidade que eu próprio a confundiria com um anjo. Mas a expressão dessa pessoa muda quando confrontada com amorfia de rostos e sentimentos das pessoas que iam sendo fotografadas. E, ainda assim, essa foi a única pessoa capaz de sentir. Sentou-se nesse solitário banco de jardim, chorando horas a fio, discreta porque ninguém a queria ver ou não a compreenderia. E eu nada fiz a não ser registá-la para não me esquecer daquele momento porque, afinal, lembro-e de ter sido assim também.





Músicas para Escrever XI, Aesthesys - Siren's Song


E se eu fosse uma onda nesse oceano imenso que em tanto se assemelha à vida?
Dias em que a calma seria tudo em mim...
Outros dias em que tudo começaria a agitar-se e eu balançaria ao ritmo de correntes felizes, agrestes, fortes, explosivas e orgásmicas, para aqui para ali, aquém e além mar, por paragens que nunca conheci, correndo atrás de pés que criam trilhos: trilhos de amor, trilhos de solidão, trilhos de multidões em busca de uma nova vida. Seria uma bênção para esses trilhos apaixonados, a companhia desses trilhos de alguém só, a esperança dessas multidão que poderiam encontrar em mim a força para se fazerem a uma nova terra, terra, quem sabe de esperança. E veria todos os faróis que existem e conversaria com eles e invejaria a confiança que eles dão a quem navega e as vidas que terão salvo. Mas vidas também eu salvaria, arrastando náufragos para a costa...
Agora estou sereno, paira uma brisa sobre mim e há um céu limpo e estrelado que me serve de lençol...É fantástica a cidade que vejo que, assim como eu, vão acalmando até a última das luzes se apagar e até o último dos noctívagos se entregar ao encantador mundo dos sonhos!




sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Músicas para Escrever X, Alcest - Ciel Errant



Entra e senta-te comigo. Falemos e partilhemos, dizem que o fim poderá estar próximo mas, francamente, isso não passa de uma paródia dogmática inventada por alguém, cujo interior foi esculpido pela inveja e limitações, numa tentativa de se rir do medo de outros que, sem pensar, deixam de viver para se agarrarem a tudo aquilo que pensam ter como garantido. Não vais levar nada desta vida, a não ser o que viveste!
Vamos encontrar esse alguém e colocá-lo-emos neste aquário que tenho guardado, fazendo bolinhas (glu-glu-glu) que, de tão pequenas e insignificantes, não têm uma réstia de ar que solte uma vogal. Rir-nos-emos, gozando a vida, que fervilha em nós, debaixo de um céu errante que, a cada dia, nos dá mais esperanças, mais sonhos, que nos convida a dormir tranquilos nas suas nuvens moldadas pelos mais íntimos e infantis desejos da nossa imaginação.
Não há vida sem sonhos, não há sonhos sem desejos, não há desejos sem vontade, não há vontade sem esperança, não há esperança sem vida e, ainda que essa vida seja pouca, vamos transformá-la, vamos conquistá-la, vamos torná-la nossa, reclamá-la nossa por direito e, à medida que for crescendo, vamos partilhá-la, vamos congregar gente aos nossos sonhos, vamos trazer essa multidão para este céu de uma energia imparável e instigador dos mais belos sonhos, vamos ser errantes como ele e não restar no mesmo porto conformados à espera de um apodrecimento prematuro, que nos conduza a uma inutilidade desenhada detalhadamente por remorsos.
Chega de lamentações, chega de nos reprimirmos, chega de nos limitarmos, chega de nos contermos. Queres correr nu à chuva? Corre, agora! Queres abraçar ou beijar alguém? Abraça e beija, agora! Quantos minutos temos de vida? Quantos para esta explosão eterna de felicidade que queremos renovar a cada dia? Vive e, mais do que deixar viver, faz viver! Grita o "vive" imperativamente! Vem, parte comigo. Seremos protegidos pelas asas de anjos que, ganhando vontade própria, decidiram não nos invejar, mas habitar esta vida, debaixo deste céu, connosco e sentir, como nós sentimos. Vivemos? Não respondas com palavras, sorri! 




quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Músicas para Escrever IX, Aesthesys - Time Is An Illusion



Luzes sequenciais que ofuscam, sinais de proibição e obrigação que não quero respeitar porque não tem que ser assim, buracos no asfalto mal emendados, solavancos nas incertas estradas de calçada, iluminação que vai oscilando e essa chuva imensa que torna todas estas visões numa aguarela que expande as suas cores debaixo das gotas grossas que a vão percorrendo até se perderem num chão inundado e solvente.
O ponteiro do velocímetro vai aumentado, enquanto ignoro o ruído do motor e me foco apenas nesta estrada. Tudo me é alheio agora, conduzo como se estivesse dentro de um túnel com uma lenta obturação e cada vez mais veloz até sentir dor de tanto pressionar o acelerador.
De repente é enorme o estrondo que ouço e não sei bem de onde vem porque não tenho tempo de olhar, enquanto sou disparado pelo vidro do carro e voo em voltas constante como uma folha solta que dança com o vento. Voo até o meu corpo ser aconchegado pela água fria desse rio que guiará o meu percurso. De tão poucas que são as minhas forças, não poderei lutar contra a sua corrente, senão aguentar-me à superfície. E de que me vale isso se estas hemorragias internas me dilaceram e, aos poucos me farão sucumbir penosamente com o sabor do sangue na boca?
Expiro todo o ar dos meus pulmões rasgados e deixo-me ir num descender pacífico no meio de um turbilhão. A minha visão torna-se turva até que tudo desaparece e, com o tudo, o meu fôlego também...





quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Músicas para Escrever VIII, Mogwai - Take Me Somewhere Nice


Caminhava só e era noite. Guiava-me a luz da lua cheia que criava contornos e silhuetas ao longo do caminho, como se todos os ramos das árvores fossem braços estendidos na ânsia de um abraço que aquecesse aquela noite gélida. Parei para descansar e senti que alguém respirava ao meu lado, partilhando comigo aquele amontoado de folhas. Não fui capaz de dizer nada. Se seria medo ou qualquer outra sensação, não sei dizê-lo. Talvez estivesse demasiado concentrado em tudo o que ali me ocupava o pensamento e esse alguém falou. Perguntou-me, numa voz doce de quem convida a um desabafo, se eu era feliz. Não soube responder. Agora os meus pensamentos eram outros: rostos de pessoas eram constantes no meu pensamento, algumas delas afirmavam com todo o fervor que eram felizes (e eu perguntava-me: até quando?), algumas diziam-me que nunca experimentaram essa sensação (e eu queria abraçá-las), outras já não recordavam o que era a felicidade (padeciam do luto a partir do momento em que a esperança havia sido sepultado à sua frente). Nenhuma daquelas imagens me ajudava a responder a essa pergunta desse alguém que ainda não havia visto o rosto. Esse alguém, de voz doce, voltou a repetir-me a mesma questão.
[Ser feliz implicará ter tudo o que ser quer ter?
E se eu quiser ir lutando por ter sempre algo novo para não chegar a um momento de estagnação por ter tudo e deixar de lutar mais, caindo num terrível e dilacerante comodismo? Não seria um suicídio ilegítimo?]
Como se vagueasse nos meus pensamentos, esse alguém passou-me a mão pelas costa e deixou cair a cabeça sobre o meu ombro. A luz da lua numa viçosa esperança iluminava cada vez mais o caminho e eu não via o fim. E para que precisaria eu de vê-lo? Voltaria ao início daquele enigma...
Deixei-me cair para trás, numa queda que parecia eterna e, sem recordar-me do momento em que o meu corpo repouso sobre as folhas secas e estaladiças de Outono, adormeci. O despertar foi esplêndido e inefável. Já não existiam escombros até onde os meus olhos conseguiam enxergar, as planícies secas que estavam para lá das árvores, ontem despidas e hoje estão vestidas de um verde lustroso, tinham florescido, por baixo de mim amparava-me agora a erva fresca e, no caminho que havia percorrido, não era apenas um par de pegadas que o havia marcado, mas sim dois.




terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Músicas para Escrever VII, Takahiro Kido - Smile - Spotter Chronicle (Fleursy Music)



E assim acelera o batimento cardíaco, arrastando consigo a respiração e todas as sensações se tornam  desmesuradamente perceptíveis porque a pele não hesita em tornar-se o veículo de um sensibilidade imensa capaz de absorver o mais leve dos toques. E assim permaneço, quieto, estático,numa tentativa de sentir e guardar, através dos sentidos, sentimentos, emoções, tudo aquilo que possa restaurar um interior que não é mais do que um frágil palácio de fino e puro cristal do qual apenas resta um esqueleto.
Milhares de estilhaços rodeiam todo esse esqueleto que resta e, agora que os dias, outrora insistentemente dolorosos, tendem a não se inibir debaixo de um vasto manto de algodão negro saturado de amarguras e desassossego encharcado de lágrimas, que lentamente se vai dissipando. Esses estilhaços brilham incessantemente num inebriante convite a um recompor.
Está na hora de reconstruir esta ruína e mostrar de novo esplendor e aí voltar a acolher fervorosamente, é hora de cultivar novos jardins ao seu redor, repletos de fragrâncias que erradiquem odores de mal-estar, novos pomares cujos frutos saboreiem bocas azedadas pela infelizes circunstâncias,  é hora de fazer brotar novas fontes que matem a sede de quem entretanto se esqueceu do que é sentir. E aí, a tristeza não morrerá à entrada desse Paraíso, convidá-la-ei a entrar e sorrirei-lhe-ei quando ela descobrir que, afinal, os lábios poderão ter outra expressão, que não mais quererá trocar.





domingo, 2 de dezembro de 2012

Músicas para Escrever VI, Alcest - Souvenirs d'un autre Monde


Quando a insónia decide partilhar o leito comigo sem ser convidada e sem ter a amabilidade de me dirigir uma única palavras, o relógio é a minha melhor e também pior companhia. Relembra-me que a hora de sair da cama está cada vez mais próxima mas também me prega as suas partidas, parecendo arrastar-se, quando me escapa a atenção. Para não mencionar também que a sua maneira de me contar histórias é demasiado monótona e, ainda assim, não consigo adormecer como numa daquelas aulas desprovidas de interesse. Em outros momentos esse objecto que mede o tempo, uma e outra vez, sem se cansar de repetir a mesma tarefa vezes sem conta, brincaria comigo de outra forma, acelerando-se o mais que consegue e haveria algum "tic-tac" sarcástico sobre o meu eterno pensamento"passou tão rápido". É, então, nesses momentos, que são fugazes como estrelas cadentes e em que todos os desejos são pedidos, que desejo ser um fantasma. Isso mesmo, um fantasma. Desejo-o desde que ouvi o "Doctor Casares" descrever esse "acontecimento" no filme "El Espinazo Del Diablo". Sim, queria ser um fantasma ainda que fosse "um instante de dor, talvez", pois, como dor, poderia ser qualquer outro "sentimento suspenso no tempo" que "voltaria a repetir-se uma e outra vez", quem sabe, porque sobre a vontade não há limites. E esse seria eu, sem fazer contas ao tempo.




Músicas para Escrever V, Mogwai - Friend of the Night



Por que baila sozinha a bailarina sobre a sua caixinha de música e eu me deixo ficar estático a apreciar o seu movimento elíptico e perfeito? É tão grande o meu egoísmo de me deixar pelo comodismo de apenas dar à corda outro e mais outro bocadinho, noite fora, até que o dia nasça e seja hora de voltar à minha rotina, sempre com aquela silhueta a ocupar-me o pensamento, desejando que o dia rapidamente acabe para que eu possa recolher-me no meu minúsculo quarto e passar mais uma noite a fazê-la dançar para mim. É a minha companhia, é o meu perder tempo, numa infindável busca pela inspiração e companhia de alguém. Hoje sinto algo diferente bem cá dentro, como se de uma vontade diferente se tratasse e já não quero dar mais à corda e cansar essa bailarina, ou fazer com que ela se canse sozinha apenas em função de uma vontade alheia e egoísta. Hoje, mais do que qualquer coisa, gostava de fazer parte desse movimento elíptico e partilhar a sua dança, delegando a tarefa de dar vida a esta dança a outro alguém que não se importasse de dar à corda nesta velha e mágica caixinha de música. Mas antes, permite-me, bailarina, que restaure esse sorriso dos teus lábios que o tempo fez perder.




sábado, 1 de dezembro de 2012

Músicas para Escrever IV, Ludovico Einaudi - In Un'Altra Vita



São luzes de esperança estas que entram pela janela deste quarto onde estou preso. O fim é inevitável, tão inevitável que me acorrentaram a esta cama ferrugenta  Não recordo a última visita que tive, apenas lembro as suas palavras "adeus, voltaremos", no entanto, sempre soube que o "adeus" não retribui esperança porque faz com que a vontade desapareça. As únicas visitas que dão consolo são estes escassos e irreverentes raios de luz que irrompem pelos pequenos espaçamentos que alguém permitiu que existissem nas grades de uma minúscula janela e se esse alguém soubesse a felicidade que isso dá ou deu a quem já por cá passou, não as teria feito assim. Gosto desses raios de luz porque, quando vêm com mais vigor, aquecem-me o corpo como um forte abraço em que dois corpos sentem a troca de temperatura e insistem em perpetuar esse momento para que não seja apenas um instante. Gosto desses raios de luz porque insistem, mesmo que chova ou o céu esteja negro, em visitar-me. Gosto deles, apesar da inspiração que a noite me dá e pelos seus sonhos. Gosto desses raios de luz, acima de tudo, porque voltam sempre. Despedem-se apenas num "até já" e quando desperto e abro os olhos, esses raios de luz são a primeira coisa que vejo, são as carícias que me acalmam a dor, são os primeiros e únicos beijos que recebo. O fim é, pois, cada vez mais próximo e já não preciso de mais visitas. Apesar de venerar a capacidade de sonhar, poderosa expansão de imaginário inconsciente que a condição física não me tira, decidi que não quero partir num sonho, tranquilamente sem dar por isso. Quero que a minha partida seja no momento em que essa luz me abraça e lentamente me deixa fechar os olhos depois de sussurrar "até já!"





sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Músicas para Escrever III, Mono - Ashes In The Snow


Depois de um clarão imenso, que estalava freneticamente e tudo aquecia, nada restou a não ser cinzas que voavam e dançavam naquele céu sobre o pequeno espaço onde o meu corpo jazia encolhido, como um feto aconchegado pela placenta.
Quando tudo acalmou e as partículas de cinza foram parando as suas valsas e repousando sobre mim, senti-me arrefecer. O frio era cada vez maior e eu não conseguia mexer-me. Por que não posso, pelo menos, tremer? E há, então, dentro de mim uma força que quer sair. São dores tremendas que não consigo acalmar e o meu interior continua a contorcer-se ferozmente.
Raios de luz começam a iluminar todo o espaço envolvente e algo sai de mim lentamente, enquanto as dores vão acalmando. Agora apenas um cadáver jaz no chão, cadáver que já não sou eu. Nas cinzas as minhas pegadas, à medida que me afasto rumo a uma floresta imensa, nua como eu.
O sol continua a indicar-me o caminho, por entre os ramos despidos, e aumenta em mim uma vontade de o seguir e corro, corro ainda mais...não sinto o cansaço, não se apodera de mim a debilidade da condição humana.
"Onde queres que vá?" E esses raios de luz respondem-me incessantemente "vem, vem"...e eu vou, com o nada que tenho. É idílico este caminho, que frenética vontade de não parar e dar esse meu primeiro grito novamente.
Sinto que estou próximo, a minha temperatura aumenta, é o sangue que corre de novo, esse sangue que quer voltar a fervilhar. "Vem, vem"...insiste essa luz.
Luz, apenas luz agora irradia esse tão aguardado lugar onde o manto de neve é perfeito e desabrocham flores escarlate como esse sangue que fervilha em mim. "Estou aqui! Fala-me!"



quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Flor de Inverno



Neste Inverno agreste,
Onde viver é vitória,
Irradia a criatura,
Semente do coração do guerreiro,
Vítima da injustiça.
Assegura o seu auge não temendo a adversidade.
Vive a nova estirpe inconformista,
Eis, a Flor de Inverno.


in "Flor de Inverno", António Campos Soares
Foto por António Campos Soares

Músicas para Escrever II, God Is an Astronaut - Dark Rift

É noite. Não sei bem que horas são mas tudo está tranquilo. Poucos são os carros que vão passando na estrada e nenhuma luz se acende na vizinhança.
Está frio.
Ajo mecanicamente para abrir o carro, sento-me e ligo o motor. Tento que algum ar quente aqueça este pequeno espaço.
No vidro embaciado, onde o meu olhar se vai perdendo, começo a imaginar todas e mais algumas formas. Desenhos infantis de espaços percorridos e vividos, sorrisos e rostos tristes que batalham entre si, memórias que se opõem na ânsia de algum triunfo e eu poderia ditar um vencedor ou, quem sabe, não. Nem "tudo é previsto, calculado ou comunicado".
O vidro vai ficando limpo e, aos poucos, essas memórias vão-se dissipando e dão lugar a um imaginário que me vai ocupando e me leva até onde não me decidi ainda dirigir porque nem "tudo é previsto, calculado ou comunicado".



Músicas para Escrever I, Mono - Burial at Sea

Aqui me rendo, sozinho, no extremo da falésia mais alta e o vento cada fez mais forte é uma vontade instigadora, um convite a uma dança no limiar. São histórias, segredos, lamentações, convites...como esse canto das sereias ouvido por Ulisses, mas eu não estou amarrado.
Em baixo, esse mar que se entusiasma cada vez mais, enrolando-se e espartilhando-se contra as rochas.
Duas forças que se abraçam e há um convite de vozes imensas que clamam cada vez mais alto.
Que arrepio me percorre até à nuca quando quero ganhar coragem.
É agora!
Dou esse passo e entrego-me a uma abismo de azul e branco, caindo, ao invés de voar, rumo a um céu diferente e, quando o meu corpo embate, um rendilhado de espuma tece a minha mortalha.
Agora desço mais lentamente até que o impacto nesse leito de areia, cripta onde repousam lendas naufragadas, molde o meu sepulcro e descanse eternamente.