sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Músicas para Escrever III, Mono - Ashes In The Snow


Depois de um clarão imenso, que estalava freneticamente e tudo aquecia, nada restou a não ser cinzas que voavam e dançavam naquele céu sobre o pequeno espaço onde o meu corpo jazia encolhido, como um feto aconchegado pela placenta.
Quando tudo acalmou e as partículas de cinza foram parando as suas valsas e repousando sobre mim, senti-me arrefecer. O frio era cada vez maior e eu não conseguia mexer-me. Por que não posso, pelo menos, tremer? E há, então, dentro de mim uma força que quer sair. São dores tremendas que não consigo acalmar e o meu interior continua a contorcer-se ferozmente.
Raios de luz começam a iluminar todo o espaço envolvente e algo sai de mim lentamente, enquanto as dores vão acalmando. Agora apenas um cadáver jaz no chão, cadáver que já não sou eu. Nas cinzas as minhas pegadas, à medida que me afasto rumo a uma floresta imensa, nua como eu.
O sol continua a indicar-me o caminho, por entre os ramos despidos, e aumenta em mim uma vontade de o seguir e corro, corro ainda mais...não sinto o cansaço, não se apodera de mim a debilidade da condição humana.
"Onde queres que vá?" E esses raios de luz respondem-me incessantemente "vem, vem"...e eu vou, com o nada que tenho. É idílico este caminho, que frenética vontade de não parar e dar esse meu primeiro grito novamente.
Sinto que estou próximo, a minha temperatura aumenta, é o sangue que corre de novo, esse sangue que quer voltar a fervilhar. "Vem, vem"...insiste essa luz.
Luz, apenas luz agora irradia esse tão aguardado lugar onde o manto de neve é perfeito e desabrocham flores escarlate como esse sangue que fervilha em mim. "Estou aqui! Fala-me!"



quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Flor de Inverno



Neste Inverno agreste,
Onde viver é vitória,
Irradia a criatura,
Semente do coração do guerreiro,
Vítima da injustiça.
Assegura o seu auge não temendo a adversidade.
Vive a nova estirpe inconformista,
Eis, a Flor de Inverno.


in "Flor de Inverno", António Campos Soares
Foto por António Campos Soares

Músicas para Escrever II, God Is an Astronaut - Dark Rift

É noite. Não sei bem que horas são mas tudo está tranquilo. Poucos são os carros que vão passando na estrada e nenhuma luz se acende na vizinhança.
Está frio.
Ajo mecanicamente para abrir o carro, sento-me e ligo o motor. Tento que algum ar quente aqueça este pequeno espaço.
No vidro embaciado, onde o meu olhar se vai perdendo, começo a imaginar todas e mais algumas formas. Desenhos infantis de espaços percorridos e vividos, sorrisos e rostos tristes que batalham entre si, memórias que se opõem na ânsia de algum triunfo e eu poderia ditar um vencedor ou, quem sabe, não. Nem "tudo é previsto, calculado ou comunicado".
O vidro vai ficando limpo e, aos poucos, essas memórias vão-se dissipando e dão lugar a um imaginário que me vai ocupando e me leva até onde não me decidi ainda dirigir porque nem "tudo é previsto, calculado ou comunicado".



Músicas para Escrever I, Mono - Burial at Sea

Aqui me rendo, sozinho, no extremo da falésia mais alta e o vento cada fez mais forte é uma vontade instigadora, um convite a uma dança no limiar. São histórias, segredos, lamentações, convites...como esse canto das sereias ouvido por Ulisses, mas eu não estou amarrado.
Em baixo, esse mar que se entusiasma cada vez mais, enrolando-se e espartilhando-se contra as rochas.
Duas forças que se abraçam e há um convite de vozes imensas que clamam cada vez mais alto.
Que arrepio me percorre até à nuca quando quero ganhar coragem.
É agora!
Dou esse passo e entrego-me a uma abismo de azul e branco, caindo, ao invés de voar, rumo a um céu diferente e, quando o meu corpo embate, um rendilhado de espuma tece a minha mortalha.
Agora desço mais lentamente até que o impacto nesse leito de areia, cripta onde repousam lendas naufragadas, molde o meu sepulcro e descanse eternamente.



terça-feira, 27 de novembro de 2012

Adérito, O Augusto

Adérito, O Augusto (* 27.11.1960 - † demasiado cedo)

Não conheci muito deste homem em vida. Eu era uma criança e o fatídico destino ditou que a sua permanência na minha vida seria curta, demasiado curta. E foi isso que aconteceu, para meu pesar. Conheci-o mais profundamente anos volvidos sobre a sua partida e, ainda assim, era aquele tio que eu não largava.
 Toda a minha família foi brindada com muita paciência para aguentar a minha infância, perante todas a minhas questões e observações – e que o confirmem os meus pais, as minhas avós, o meu tio Quim ou o meu tio Zé de Brito, os meus padrinhos - mas o tio Adérito, um dos irmão do meu pai, era extremamente paciente, o que mais se ria, o que mais alinhava, o que me dizia "Carago, tu és mais chato que a putaça" e me pedia sempre para continuar depois de me dar um cachaço. Cedo, ainda antes de eu ter nascido, o tio Adérito emigrou para a Suiça e apenas muitos anos depois percebi que isso não foi uma simples necessidade financeira, mas sim uma necessidade para se tentar afastar do que o mitigava por cá e o terá mitigado por lá também, pelo que fui conhecendo.
Quando cá vinha, eu não o largava. Passava os dias com ele e, apesar do seu problema, os meus pais confiavam nele e muito lhes agradeço por não me terem privado dessa convivência. O tio Adérito, quando estava cá, vivia com a minha avó Adília e sempre que eu ia para lá, queria dormir com ele. A imaginação do tio Adérito era enorme e eu adorava ouvi-lo contar-me histórias. Raras eram as vezes em que, estando eu em casa da avó Adília, ele não passava a noite em casa. Quando não passava, eu perguntava-lhe onde tinha ido e ele, pondo-me a mão no ombro e fixando os olhos no chão, respondia-me "fui para os micróbios". Na minha pueril inocência não percebia o que aquilo queria dizer mas também não ficava a remoer muito na sua resposta e talvez não visse mal em tal coisa.
Passou muito tempo sem que ele tivesse vindo da Suiça, ou de algum centro de reabilitação (mas isso eu não sabia) para uma visita e, um dia, comentava com as minhas primas gémeas que seria boa ideia ligar para o "Ponto de Encontro" porque tinha saudades dele e todos concordámos. Estávamos a conversar na cozinha da velha casa da avó Adília e momentos depois vi-o entrar pela porta da cozinha com um sorriso enorme. Provavelmente esse era o motivo para a família estar ali toda reunida, mas como a minha família sempre foi unida, nada me faria prever a sua chegada e para mim foi uma surpresa enorme. Os dias que seguiram passei-os lá. Andava o dia inteiro com o meu querido tio Adérito. Não me negava nada: um ovo de chocolate ali, uma pastilha elástica acolá. Apesar de andar sempre teso por causa do vício, guardava sempre uma moeda no bolso para me mimar. Um dia à noite, antes de adormecer, perguntei-lhe se voltaria para a Suiça e ele disse que tinha vindo de vez e que, quando eu fosse maior, me explicaria tudo.
 Não sei quanto tempo terá passado depois desses dias e também não tenho mais memórias dele. Os meus pais disseram-me que afinal ele emigraria de novo com uma namorada para a Alemanha, mas não passou do Hotel do Gerês, onde vitimado pelo seu maior vício e, sofrendo uma overdose, acabou por ser levado para o hospital de Guimarães. Aí viria a falecer, depois de alguns dias de agonia pedindo desculpa por todo o sofrimento que fez causar a todos os que o rodeavam, prevendo que aqueles seriam mesmo os seus últimos dias de vida. Foi essa a última notícia que tive dele.
Havia, na velha casa da minha avó Adília, um sótão cheio de tralhas de toda a gente e eu costumava brincar lá com a minhas primas. Descobríamos sempre algo novo para vasculhar e engendrar novas brincadeiras. Mais de dez anos depois da morte do tio Adérito, para que o telhado da casa da minha avó pudesse ser restaurado, já que quando chovia muito entrava água, decidiram limpar o sótão. Foi então que descobri as coisas do tio Adérito: centenas de fotografias de todos os sítios por onde tinha passado e postais, muitos postais que ia recebendo, uma caixa cheia de cartas, que há pouco tempo decidi ler e eram correspondências entre o tio Adérito e o meu pai cheias de confidências, preocupações, desabafos e palavras de coragem do meu pai, muitos livros (Jean Ray "O Leito do Diabo", Franz Kafka "Amerika", Friedrich Nietzsche "Assim Falou Zaratrusta", entre outros que nunca tinha encontrado entre as prateleiras do resto da família) em várias línguas já que o tio Adérito era poliglota, cassetes em grande número (Nina Hagen, Dire Straits, Prince) e outros objectos pessoais dele que felizmente guardei. Caso eu não estivesse lá no dia das arrumações, tudo estaria provavelmente perdido e eu não o teria conhecido melhor. Não julgo o resto da família, porque há diferentes perspectivas de mágoa e sofrimento, mas pareceu-me, naquele minha visão de criança em que tudo se guarda, que ninguém estava interessado em guardar as suas coisas, mas poderá ter sido apenas uma mera impressão minha. Mas o meu pai, que estava comigo, não teve nenhuma atitude de repreensão ou algo que se parecesse ao ver-me pôr todas aquelas coisas do seu irmão na mala do carro. Na verdade, não soube o que lhe terá passado pela cabeça.
 No meio de todas as cartas que trocava com o meu pai e junto a outros objectos pessoais do tio Adérito encontrei muitas fotos minhas, que o meu pai lhe ia enviando ou outras que ele ia tirando comigo. Os meus pais contam-me que uma vez vim com ele sozinho da Madeira para Joane e eu estava doente. Cheguei bem, chegámos bem! "Que aventura que foi aquele episódio", dizem constantemente os meus meus pais. Apesar de tudo, sempre que ouço essa história nuca sinto qualquer quebra de confiança no meu tio pela parte dos meus pais. Tinha um problema grave mas era um grande homem, era leal, apesar da fraqueza.
As outras fotografias que vou vendo, excluindo algumas duvidosa e que me enchem de raiva, mostram um homem feliz, jovem, aventureiro e, de certo modo, com muitos momentos de vida invejáveis. Que pinta que o meu tio tinha, penso eu muitas vezes. Tirava fotos espectaculares, andava de mota para todo o lado e chegou a vir para Portugal algumas vezes nela. Mas o vício levou-o a desfazer-se da mota, da câmara fotográfica, da casa e de muitas outras coisas que o terão feito feliz e nem tempo teve para me contar mais da suas histórias.
Haverá por aí muitas histórias semelhantes entre inúmeras famílias e não pretendo reclamar exclusividade, apenas quero alertar. Quero que vivam mais e que façam mais gente feliz por muito mais tempo, que não se deixem fraquejar e acabar miseravelmente, que não sejam egoístas. Tio Adérito, apesar da tua fraqueza, que te impôs um fim miserável, guardo apenas as melhores memórias talvez por naquele tempo ser uma criança, e não serei o único, assim o espero. Que esta tua história possa salvar gente e acredito que o fará.
Adérito, O Augusto que, acabando de maneira miserável, traído pela tua maior fraqueza quando não quiseste ouvir quem te queria, deixaste, ainda assim, gloriosas memórias!
Este seria o teu 52º aniversário e certamente estaríamos felizes, juntos em algum sítio...De qualquer maneira, Parabéns, tio Adérito!
Um abraço eterno do sobrinho mais chato de todos!

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Memórias de Café XIV - Perfeita obra de arte

Madrid, 10.08.2010

Hoje estive no Museu do Prado. Deleitei-me com algumas peças, mas a verdadeira obra de arte, encontrei-a fora do museu, enquanto descansava no jardim.
Um menino, que teria os seus três ou quatro anos, caminha com o seu andarilho, em direcção aos pais e ao irmão que, como eu, estavam a ver um guitarrista a tocar a "Spanish Caravan".
O menino trazia agarrada, com força, na sua mão, uma moeda para dar ao guitarrista. Chegou-se pertinho e, ao atirar a moeda, faltou-lhe força e a moeda caiu fora do estojo que o guitarrista abria para receber um pequeno contrinuto de quem passava. O irmão do menino, um pouco mais velho do que ele, aproximou-se e pegou na moeda, no entanto, ao contrário do que eu esperava, devolveu a moeda ao seu irmão, dizendo-lhe "vamos, otra vez" e o menino consegui.
A família seguiu junta e feliz!
Eu contemplei o momento, estático, com lágrimas nos olhos, sorrindo...


António Campos Soares