terça-feira, 4 de junho de 2013

Músicas para Escrever LV, Collapse Under The Empire - Captured Moments

Hoje tive que ouvir música e escrever, imperativamente. São demasiado os infortúnios que necessito de expurgar do meu pensamento e tantos as vontades e visões que tenho que guardar bem gravadas, ainda que em cicatrizes para nunca me esquecer o que representam porque as cicatrizes são mais permanentes e incógnitas que a tatuagens.
As minhas noites oscilam entre pesadelos mórbidos e melancólicos e sonhos que desejava serem realidade. A ironia é que não quero acordar nem dos pesadelos, nem dos maravilhosos sonhos que com eles se alternam. Os pesadelos, quero resolvê-los e dar-lhes um final digno e os sonhos não os quero abandonar, ao ponto de não saber se, por vezes, são realidade ou imaginário e, nesses casos, apodera-se de mim a angústia quando desperto para dita realidade, que também não prefiro em detrimento dos pesadelos.
Num dos pesadelos paguei com o consentimento da minha lobotomia uma vida que queria salvar de um contínuo decepamento. E a anestesia, os perder dos sentidos era real que acabei por perecer num túnel numa manhã de nevoeiro e não terá sido um parecer no seu lato sensu, mas sim num stricto sensu que me terá abandonada num hospício perdido, de onde um dia me hei-de resgatar. Outras vezes a visão é demasiado trôpega e cansada que me encontro em lugares desconhecidos, estando só em cenários de um pós-apocalipse que levou para longe todos aqueles que conheço e não quero despertar, pois naquele pesadelo, ainda que assim o seja, consigo encontrar esperança para me perder na busca de alguém e, no oscilar da noite, essas personagens cruzam habilmente as fronteiras da noite que separam os sonhos dos pesadelos.
Eu sou o homem de lugar nenhum que busca incessantemente o bem e o mal, o infortúnio e a graça, o ódio e o amor, a dor e a cura, a escassez e a abundância, as chagas e o bálsamo porque tenho uma necessidade imperante em sentir-me vivo e a dor faz parte desse processo, a imunidade cria-se assim, os objectivos e os caminhos que seguimos traçam-se assim.



domingo, 2 de junho de 2013

Memórias de Café XV - O Nero

O meu avô António era caçador!
Pelo menos tinha sido mas a licença caducou. Um dia disse-lhe que gostava de ir à caça com ele, mas nessa altura a doença já o tinha tornado débil e nem tínhamos cão de caça. Ainda assim ele fez-me a vontade: renovou a sua licença e arranjou um coelheiro de caça, o Nero.
Não fomos muitas vezes à caça, naquele ano a doença já tinha tido alguns avanços. Ainda assim ele treinou o Nero e fomos caçar algumas vezes, mas nunca conseguimos nada. Hoje entendo que aquilo foi uma bondade para satisfazer uma vontade.
Entretanto, voltou para o hospital com o agravar da doença, mas  Nero continuava connosco. Era um cão de pequeno porte castanho claro, muito afável e companheiro.
Quando o meu avô teve uma recaída inesperada e teve que ser internado, não durou muitos dias para que o Nero arranja-se maneira de quebrar a sua corrente e fugir. Depois de algumas semanas o meu avô voltou para casa e ficou desgostoso quando soube da notícia. Todos os dias ia ao fundo do quintal e olhava com tristeza para a casota vazia. Mas não tardou mais de uma semana e um vizinho encontrou o Nero a vaguear a uns quilómetros de casa, na zona onde costumávamos caçar. Que alegria foi aquele reencontro.
No verão desse ano, o meu avô voltou a piorar, ao ponto de ser novamente internado já sem esperanças de voltar a casa e poucos dias antes da sua partida, o Nero voltou a arranjar maneira de escapar...desta vez para nunca mais voltar!
Tenho-me lembrado disso ultimamente, pois agora temos um cadelinha lá em casa, a Sura, que está sempre a farejar no meio dos arbustos à procura de alguma coisa. Tem bom faro!
Ias gostar muito de a conhecer!

Um abraço eterno e até já =)


Músicas para Escrever LIV, Fever Ray – If I Had a Heart


Ele nunca disse nada, não porque as palavras fossem poucas ou porque sofresse de mudez em determinados momentos. Não disse, nem dizia, porque, no seu entendimento, não deveria afectar as decisões ou as acções das pessoas que o rodeavam. Este era o seu meio de respeitar a liberdade total de quem conhecia.
O seu silêncio de liberdade era considerado muitas vezes como uma apatia profunda e estagnação emocional. Na verdade, tinha os seus momentos de apatia e solidão por ser incompreendido, no entanto, também compreendia as pessoas e estava consciente da condição de repressão sentimental. Ele próprio havia diagnosticado essa patologia em si mesmo.
Muitas vezes não falava porque não lhe perguntavam e não se lembrava de que às vezes era necessário ceder.
Muitas vezes não falava porque algo o prendia bem lá dentro.
Mas ele não era apático. Ele adorava as pessoas e queria conhecer sempre mais pessoas e, de facto, conheci-as, mas os quilómetros de distância eram uma constante sempre que conhecia alguém. Muita gente pensaria talvez que seriam as pessoas erradas, mas isso foi algo que nunca lhe ocorreu. Ele próprio havia sido desde sempre uma deambulante, aqui e ali, sem um lar fixo, pois qualquer sofá poderia ser o seu lar perfeito.
Um dia apoderou-se dele uma enfermidade gravíssima e foi aí que tudo começou a desabar, tornou-se um desgraçado mendigo de emoções que não sabia processar ou expressar. O seu mundo já não era o mesmo. Uma fobia social foi-se apoderando dele. Já não falava em público. Já não caminhava de cabeça erguida. Os seus projectos já não saiam mais do pensamento, a vontade estava perdida ou esquecia-se sempre dele para onde quer que fosse e isso era o que mais o dilacerava e os seus olhos estavam baços como nunca haviam estado, tinham perdido o brilho de tantas lágrimas que tinham salgado a pele áspera do seu rosto e, em consequência disso, a visão havia-se deturpado, vendo apenas sombras em alguns momentos.
Um dia, estando a passear numa falésia, tentando encontrar respostas, aproximou-se demasiado do limite e, esquecendo a sua vontade viver, caiu e não mais foi visto. Quero acreditar que encontrou conforto naquele mar imenso tão salgado quanto as suas incontáveis lágrimas.