Bom dia! – era assim que o cumprimentava todos os dias, no caminho para o trabalho.
Todos os dias, fizesse sol ou chuva, lá estava um desconhecido senhor, com os seus oitenta anos, sentado no banco da paragem de autocarro da Rua das Lembranças. Há dois anos que vivia naquela cidade e nunca me tinha dado na gana perguntar-lhe por quem ou o quê é que ele tanto aguardava. Era-me indiferente!
Tinha-me mudado para aquela cidade numa tentativa de esquecer algo de um passado ingrato da minha vida e estava a resultar. Tinha-me estabelecido ali, era professor de espanhol e um escritor noctívago.
A pacatez daquela vila fazia-me bem. Ninguém me conhecia, a não ser da maneira que eu desejasse e podia vaguear como bem entendesse. Passava grande parte do meu tempo no café “Transeunte”.
Parava lá, no final de jantar, e aí permanecia, noite adentro, excepto ao fim de semana, trabalhando, ou simplesmente divagando por entre linhas, numa mesa junto à janela. Dali, passei a observar aquela pessoa que tão indiferente me era, sentado, esperando, olhando constantemente para o fundo da rua, onde já não passava um autocarro há mais de três anos.
Aquilo passou a perturbar-me, a indiferença convertera-se em curiosidade. Chamei o empregado do café, um miúdo com os seus dezoito anos que procurava ali maneira de juntar umas coroas.
- Por quem tanto espera aquele tipo? – questionei-o, em voz baixa, com alguma cumplicidade, olhando pela janela.
- Ui, o Sr. Alfredo, hum, não tente compreender, o tipo é esquisito… - respondeu o empregando, fazendo um bocado de troça.
- Não sabes mesmo nada sobre ele? – insisti.
- Dizem que o tipo, em criança, foi o único sobrevivente de uma doença qualquer que atacou a família dele. – respondeu-me ele, tentando recordar-se de algo mais.
- Mas, que tem isso a ver com o Sr. Alfredo passar ali os seus dias? – a minha curiosidade não desaparecera.
- A família que ficou com ele dizia-lha que, um dia, a sua família verdadeira o viria buscar, num autocarro, e iriam dar uma volta juntos…ou algo do género! O tipo não joga com o baralho todo, dizem que sofre de uma doença que ataca a cabeça, com um nome estranho… - respondeu ele desinteressado, olhando o relógio para ver se já era hora de sair.
Eu observava-o, eram quase dez da noite, hora em que ele voltaria a casa.
Esticou o braço esquerdo para arregaçar a manga do casaco e ver as horas, olhou para o fundo da rua, levantou-se e partiu. Caminhava de olhar fixo no chão, abanando a cabeça. Fiquei com a sensação de que dialogava sozinho.
Sim, o Sr. Alfredo sofria de Alzheimer e estava numa fase de regressão, vindo-lhe à cabeça as memórias mais vivas da sua infância que lhe alimentavam uma ilusão inatingível.
Um domingo de manhã, saí bem cedo de casa e sentei-me no banco ao lado do Sr. Alfredo a escrever no meu diário.
- Você escreve muito… - disse ele, para meu espanto.
- É algo que me faz bem e me aviva a memória. – respondi-lhe.
- Sabe, estou à espera da carreira, a minha família vem-me buscar para irmos passear todos juntos, talvez se tenha atrasado! – desabafou o Sr. Alfredo, olhando o relógio depois de espreitar para o fundo da rua.
- Certamente estarão a chegar! – confortei-o eu.
Não obtive resposta. Sr. Alfredo murmurava algo que eu não compreendia. O seu olhar estava fixo no chão.
Fechei o meu caderno e saí lentamente. Senti pena do velho Alfredo. Anos de espera, uma ilusão alimentada pela demência.
Mais Domingos e voltara a fazer o mesmo. Um deles, Sr. Alfredo falara-me da sua família, contara-me brincadeiras da sua infância. Eram conversas curtas, muitas vezes interrompidas por momentos de desalento e murmúrios imperceptíveis, acompanhados de um olhar perdido e solitário. Eram conversas que eu ia registando no meu diário e ia sentindo um certo carinho pelo velho homem.
A cada Domingo, acordava cheio de vontade de sair de casa e ir para a paragem de autocarro e quem sabe, ouviria uma nova história.
Mas um Domingo de Inverno, creio que em meados de Janeiro, se não me falha a memória, Sr. Alfredo não estava lá. Atravessei a rua, em direcção ao café.
- Aquele velhinho, o Sr. Alfredo, não o viu na paragem? – perguntei, estranhando.
- Não soube? Ele faleceu ontem à noite, aí mesmo na paragem do autocarro…O Zé assistiu a tudo. Quer que o chame aqui? – informou-me a dona do café, enquanto limpava uma mesa, dando pouca importância ao que tinha ocorrido.
Não quis acreditar no que ouvira. No entanto, pensei “bem, agora está em paz e não o atormentam as memórias do passado”.
- Bom dia! – disse o empregando, chegando-se à mesa onde me tinha sentado, ajeitando a camisa que trazia vestida.
- Bom dia! – respondi-lhe eu ainda abalado – conta-me, conta-me o que aconteceu ao Sr. Alfredo. – quase o obriguei a fazê-lo.
- Não há muito p’ra dizer. Vi o homenzinho levantar-se de maneira esquisita, fazendo gestos como se fosse p’ra chamar o autocarro. Esfregava as mãos de satisfação, ria-se e voltava a abanar os braços com alegria…não tava a perceber nada do que se passava ali…De repente, caiu no chão e ali ficou. Corri p’ra ajudar, mas já foi tarde, tava morto, mas sorria e tinha a cara com lágrimas!
Fui para casa, sem proferir uma única palavra, sentindo-me um ser reduzido a um mísero pedaço de nada. Não somos mais do que vítimas do tempo. O meu duvidar havia-se tornado em remorsos e…Afinal, o Sr. Alfredo sempre apanhara o seu autocarro.
António Campos Soares
Sem comentários:
Enviar um comentário