Inocência era viúva há já muitos anos.
Um mal ruim na garganta havia levado para muito longe o seu marido, o seu querido Adolfo. Juntos tiveram 3 filhos. Joaquim e Manuel pereceram em território africano, numa guerra cujo sentido quase lhes era desconhecido. Era confuso, muito confuso, como escreveram na primeira e única carta que enviaram, juntos, poucos dias depois de chegados ao seu destino, no meio de uma selva que lhes dava medo.
O filho mais novo, Nelinho, havia estudado e era médico. Vivia na cidade sozinho, longe, para onde Inocência sempre recusara ir. Assim se acostumou aos espaços urbanos, desde que havia saído de casa para estudar. A doença que vitimara o seu pai, despertara nele o interesse de o curar.
Ainda que só vivessem mais quatro idosos na sua aldeia, Inocência queria acabar os seus dias no seu quatro, onde as memórias eram demasiado fortes e vivas, de onde podia olhar pela janela para contemplar o repouso do seu Adolfo. Era assim que ocupava parte do seu tempo, envolta por fotografias a preto e branco que ocupavam a cómoda do seu pequeno quarto: uma fotografia do seu casamento, no centro da cómoda, dos lados havia fotos dos filhos, ainda crianças, fardados, ou do Nelinho após a sua formatura. Na mesinha de cabeceira jaziam estampas de todos os santinhos a quem prestava devoção, havia uma de São Sebastião que lhe oferecera Joaquim antes de embarcar, outra de Nossa Senhora das Dores, um São Brás, entre outros…
Nelinho vinha todos os anos à aldeia comemorar o aniversário da mãe e todos os anos, Inocência perguntava ao filho se lhe daria netos antes de ela morrer e ele mudava de assunto, pois, Nelinho guardava um segredo que Inocência não compreenderia.
Quando Inocência completou 75 anos, Nelinho ofereceu-lhe uma televisão. Ensinou-a como devia ser utilizada e partiu no dia seguinte. Inocência não mais abdicou daquele preciso presente e os restantes aldeões passaram a partilhar com ela longos serões.
Inocência ganhou um enorme carinho pelas novelas que ocupavam as suas tardes e noites. Por vezes, mesmo com dificuldades de leitura, via aqueles filmes estrangeiros. Que fascínio, que presente tão maravilhoso. Sabia o nome de todos os actores e actrizes das várias novelas que acompanhava, sabia em quantos novelas haviam aparecido…
No ano seguinte, quando jantava com Nelinho, já não lhe perguntou o habitual, essa deixara de ser uma das suas preocupações… apenas quis saber o porquê de o seu marido e os seus filhos perdidos não terem sido também actores de novelas, que numa novela morrem e na outra estão vivos e jovens, ou que numa estavam doentes e na outra de perfeita saúde…
Nelinho chorou toda a noite e no outro dia partiu de novo para a cidade, sem ter abalado a inocência da sua débil mãe.
3 comentários:
Gosto muito do blog... Está excelente ;)
Olá, Cláudia!
Grato ;)
Prometo dar uma olhadela com calma no teu também =)
Já vi que segue... Obrigada (:
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