terça-feira, 5 de outubro de 2010

A Gota

Não raras vezes, desejei já ser uma gota de água.

Este desejo realizaria a minha aspiração de imortalidade.

Passaria por vários estados, experimentaria inúmeras sensações, encarnaria os mais antagónicos sentimentos: seria parte de um iceberg, onde algum barco colidiria, ou do bloco de um iglu, conheceria os pólos, veria as auroras boreais, ou então, seria parte de um cubo de gelo na bebida de alguém, em qualquer parte do mundo; fundir-me-ia, percorreria todos os oceanos, veria as mais monstruosas ou delicadas criaturas, seria caudal dum rio, surgiria da nascente mais cristalina, em algum sítio totalmente virgem, mataria a sede, ou poderia até ser ignorado…evaporar-me-ia numa poça, num deserto, ou até do bule de alguém que quis fazer chá…

Que fantástico seria ver o mundo lá de cima, seria como um deus, não pagaria para voar, saberia o que realmente é estar nas nuvens, seria parte de uma, seria parte do sonho e das divagações de alguém, seria desejo de povos e realizaria preces de desespero…

Um dia cairia, de volta para a terra…poderia experimentar a adrenalina de uma tempestade, acompanhado de um relâmpago, dançar com o vento, rasgar o céu e sentir-me dispersar no impacto bruto com o solo. Cairia numa chuva passageira e percorreria um corpo, provocando arrepios causadores de loucura a alguém que me beberia, ou me limparia, seria uma gota de suor num corpo nu acabado de fazer amor.

Seria lágrima de alegria, ou de angústia de alguém que perdeu, seja qual for a sua perda, seria a gota que faria um copo transbordar numa pândega de amigos, seria escarros de insatisfação na mais justa das revoluções, ou parte do plasma de uma gota de sangue derramada em nome da honra…

Poderia ser parte de qualquer ser, racional ou irracional…

Poderia ser livre, poderia ser TUDO!


António Campos Soares

4 comentários:

Icarus disse...

Remeteste-me automaticamente para as "Memórias de um Átomo", de João da Ega ;)

António Campos Soares disse...

Boas!
Grato! Confesso que este é um daqueles comentários que dá motivação!
Abraço

Icarus disse...

Não quero de forma alguma tecer uma comparação. Até porque as "Memórias de um Átomo" não passou do produto do diletantismo da personagem literária de Queirós. Foi apenas a reminiscência que me trouxe o paralelismo entre uma e outra.
A tua ganha. Está concretizada. E nada substitui algo acabado ;)

Um abraço

António Campos Soares disse...

Sem dúvida alguma, dou-te toda a razão e lamento o facto de ninguém ter realmente pegado nessa ideia que Eça nos planteou através de João da Ega...Sempre gostei da excenticidade dele! =)
Abraço