“O nascimento do leitor tem de pagar-se com a
morte do Autor.”
Há
já vários anos que o Autor reflectia sobre as palavras de Roland Barthes,
tentando encontrar nelas algum sentido para a sua moderna existência e para o
seu futuro, ora trémulo ou pungente, ora corroborado ou exaltado. Todos esses
anos, sob reflexões sobre essas palavras de Barthes, foram também os
necessários para o Autor produzir a sua última obra, que seria a mais brilhante
e aclamada. Este foi o tempo profícuo da sua existência, da sua vida, talvez da
sua longa linhagem, da qual não contarei já o desfecho.
Desde
o final da Idade Média, com o Renascimento e os seus ideais humanistas antropocêntricos
de afirmação do indivíduo, com o racionalismo francês, com a Reforma
Protestante, com o empirismo inglês, com o positivismo, instalou-se no mundo
ocidental a família do Autor, uma estirpe centrada no “prestígio pessoal do
indivíduo”. É uma família com imensos membros que começaram a afirmar-se e a
vigorar, um pouco por todo o lado, detendo a autoria de tudo o que iam produzindo,
criando uma cisão com o anonimato ou colectivos anteriores dos apreciados cancioneiros.
A
verdade é que ainda hoje os vários membros deste clã Autor reinam na história
da literatura, nas biografias dos escritores, em revistas, em jornais, em
entrevistas, nas críticas devido à incapacidade dos críticos em dissociar a
obra e a pessoa que a produz, na feroz necessidade de encontrar na obra os
gostos, os ideais, as paixões, a pessoa, o carácter autobiográfico do Autor,
levando a que a imagem da literatura destes tempos seja “tiranicamente centrada
no autor”.
De
facto, o Autor detinha, na sua enorme mansão, um grande espólio de recortes,
registos de tudo aquilo que havia sido centrado nele: entrevistas, resenhas e
críticas literárias, biografias oficiais e não oficiais, autorizadas e não
autorizadas, artigos de jornais ou de blogues, estudos que entrelaçam o
escritor e a obra. Tudo isto estava num mausoléu que criou, como um santuário,
o seu próprio santuário, que ele próprio venerava mas que, nesses últimos
tempos, pensando nas palavras de Barthes, havia descuidado e o pó amontoava-se
sobre todos aqueles livros, a luz ia fazendo desaparecer as letras dos recortes,
assim como a humidade os ia fazendo apodrecer.
Anteriormente,
o Autor queria ser ele próprio conhecido através da escrita que considerava
sua, de uma linguagem que também pensava ser sua, de tudo que cria ser centrado
em si. Mas a escrita não era sua, a linguagem também não o era. Nada era seu, a
não ser a mão que escrevia e a vontade! Primeiro estranhou: o seu mundo, até
ali tão idílico, aparentemente inefável e tão seu, abalou-se, desmoronou-se,
desconstrui-se. Depois entranhou-se: a sensação era boa, sentia uma liberdade
correr em toda a sua inspiração. A linguagem passou a falar por ela própria e não
o Autor, que sentia a magia de desaparecer, como um mago, deixando apenas um
pouco de magia que daria liberdade total a quem a recebesse. A performance
descentralizou-se assim, passando do “eu” para a “linguagem”, dando seguimento
à poética de Mallarmé: “suprimir o autor em proveito da escrita”. É isto que
passa a ser importante para esse intitulado Autor que, assim sendo, já não é mais
Autor, mas simplesmente aquele que escreve. Durante algum tempo, o Autor
invejou Proust pelo sei feito de, ao invés de passar a sua vida para o romance,
fazer da sua vida uma obra. Depois descobriu o seu próprio caminho.
Previamente,
durante o Surrealismo viveu um período de eremitismo. A ideia de partilhar um
texto com alguém, de experimentar uma escrita a vários fazia-lhe confusão,
provoca-lhe náuseas por ter de misturar uma substância, que considerava tão
sua, com a de outrem, que provavelmente nunca havia conhecido. Sentiu raiva com
o contributo dos surrealistas “para dessacralizar a imagem do autor”, que fez
do Autor aquele que simplesmente escreve, passando a linguagem apenas a
conhecer o “sujeito” e não a “pessoa”. O Autor, isolado em sua ermida, sentia a
dor de algo que considerava uma doença que acometia outros membros da sua
estirpe e, esse foi um tempo diferente, não produziu nada.
Após
esses tempos de isolamento, novas tendências vieram e o Autor ia ficando
atento, no entanto, mantendo a sua distância, preservando a sua integridade de
Autor. Continuava sem escrever, aumentava-lhe a angústia dessa solidão, desse
individualismo, desse reconhecimento massivo impertinente em tudo aquilo que
escrevia e do qual nunca conseguia dissociar-se. Mas, eis, que chegou o dia e
muralhas de conceitos e ideias se demoveram para deixar entrar em si algo novo,
algo conquistado por uma liberdade que no fundo, sem que o soubesse, lhe
agradava. Nasceu em si, então, o scriptor.
Começou a fazer sentido em si o aqui
e o agora, ao invés de eternidades
monótonas que com ele se arrastavam, como correntes das quais não conseguia
libertar-se. Esse seu íntimo scriptor
nasceu quando começou a escrever o seu texto, esse derradeiro texto de liberdade,
que será delegada, de dimensões múltiplas, entre matrimónios e uniões de
escritas variadas, que originam novas escritas, sem que nenhuma delas fosse
contudo original, quando sem amarras oferecer o texto ao mundo. Assim, já não
detém, como anteriormente, quando acerrimamente se afirmava como “o Autor”,
paixões, impressões, sensações, sentimentos, ilusões, “mas sim esse imenso
dicionário onde vai buscar uma escrita que não pode conhecer nenhuma paragem”.
O
Autor, agora ancião, mas dotado de uma nova perspetiva plena de liberdade, sua
e dos que receberem o texto que escreveu, já não procura impor-se à sua obra ou
impor ao seu texto um último e derradeiro significado, castrando o desconstruir
que possa vir a ser processado pelo leitor para deslindar o que lê, fazendo disso
“coisa” do passado, dos seus antepassados retrógrados.
Após
todos esses anos, o Autor encontra um herdeiro, que nunca imaginou vir a ter.
Todo o seu individualismo e tentativas de exaltação levaram ao seu isolamento,
a uma envelhecer solitário. Desconstruíram-se, então, ideias e pensamentos
tidos como verdades absolutas e, assim, um texto passou a ser “feito de
escritas múltiplas, saídas de várias culturas e que entram umas com as outras
em diálogo, em paródia, em contestação.” No entanto, há um lugar, alguém onde
tudo se encontra e esse alguém é o herdeiro do Autor, que passou a scriptor, o leitor, alguém que até li
nunca tinha sido valorizado. É este leitor que dará vida ao escrito porque é
para ele que, afinal de contas, o escrito conflui.
Terminado
o seu texto, o Autor em tempos, agora scriptor,
consciente da realidade e da liberdade que se propõe a delegar, após
entregar o texto ao leitor, bebe o seu derradeiro cálice de licor onde
acrescentou algumas gotas de cianeto porque “o nascimento do leitor tem de
pagar-se com a morte do Autor”. Era uma bela tarde de primavera e o sol
brilhava no horizonte. Na mesa onde se sentava, de frente para uma jardim que
começa a ganhar imensas cores, restou uma carta que serviria de testamento e
havia um único pedido:
“Por
toda a felicidade e tranquilidade que a escrita me trouxe, pelo sentido que ela
deu à minha débil existência, nestes derradeiros anos e pela companhia que me
foi oferecida pelo scriptor, peço
gentilmente que não tirem liberdade ao derradeiro texto que envio ao mundo, que
quando lido será do leitor e não meu, e, ao invés de um nome, vigente durante
séculos, que comigo quero enterrar, conste apenas o scriptor”.
O
texto percorreu o mundo, em várias línguas até, como nunca havia acontecido, e,
respeitando a último pedido de quem escreveu, sem que ninguém soubesse quem era
o misterioso “o scriptor”, o texto
foi desconstruído inúmeros vezes, deslindado pela milésima vez, lido vez sem
conta porque ninguém sabia que paixões alheias procurar, que pessoas procurar.
Afirmou-se o aqui e agora, rodeado de “sujeito” e não “pessoas”.
Era um texto sobre a loucura e ninguém sabia se essa era a loucura do Autor,
que ninguém conhecia, do scriptor, do
“sujeito”, da “pessoa”, do leitor, de alguém. Era a loucura para quem quisesse
vivê-la, para quem quisesse experimentá-la, interpretá-la à sua maneira e seria
sempre diferente, dependendo do aqui
e do agora, da circunstância da sua
leitura.
António Campos
Soares
Bibliografia específica
BARTHES, Roland
– “A morte do autor”, O rumor da língua. Lisboa: Edições 70, pp. 49-53
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