Era o fim de tarde de um dos últimos dias quentes de verão,
sentou-se na laje do túmulo que nunca quis ver edificado, tirou um papel do
bolso e leu-lhe aquele carta, a sua última carta, a carta que queria que fosse
lida, que lhe queria enviar mas que, por infortúnio da vida, nunca lhe havia de
chegar.
"Morreste-me demasiado cedo…
Como aquele infante nascido demasiado prematuro, que ninguém
acredita que sobreviverá, mas sobrevive, e tu morreste-me!
A questão não se põe no quando, mas no facto de que não me deverias
ter morrido.
As pessoas como tu não merecem morrer assim, cedo e em
agonia. As pessoas como tu são genuínas, constituídas por uma matéria tão pura
que se fossem escarnadas, laminadas, analisadas ao mais ínfimo dos pormenores,
não lhes seria encontrada uma ponta de maldade ou qualquer tipo de mácula.
Morreste-me demasiado cedo, quando precisava de ti e porque
ainda preciso. E se não me tivesses morrido, os meus monólogos não seriam
tantos nem tão longos e o meu olhar não se perderia tanto na linha do horizonte
à espera de ver-te chegar um dia, ou nas longas noites de insónia a imaginar
como seria cada momento que passei se não me tivesses morrido.
Estou certo que todos teremos o momento de largar este corpo
e eu não me atreveria a pedir que ficasses cá para sempre, pois, isso seria
sobrecarregar-te de sofrimento. Se não me tivesses morrido, apenas pediria que
partisses um pouco antes de mim porque, se já sofri uma vez com a tua partida,
voltaria a sofrer, no entanto, de maneira diferente porque teria vivido muito
mais ao teu lado.
Aquilo que pensámos ser um enorme círio, cujo pavio poderia
arder durante uma vida, tornou-se numa pequena vela que fulminantemente se
consumiu.
Morreste-me demasiado cedo porque és insubstituível. Cada
pessoa é única, no entanto, e concordarão comigo, há pessoas que, apesar da sua
característica una, podem ser substituídas, dependendo das suas circunstâncias,
mas tu és insubstituível, não importando o lugar, o dia ou a circunstância.
Morreste-me demasiado cedo ontem, hoje e amanhã porque a tua
morte é uma ferida sem cura que vai infeccionando cada vez mais com a alastrar
do tempo e se retirar a minha camisola verás que tenho já meio corpo com chagas abertas. Vou acalmando a minha dor lambendo essas chagas com memórias, mas
essa cura não se tem mostrado eficaz.
Morreste-me demasiado cedo e a incerteza de saber se me
ouves enquanto te leio esta carta também me corrói porque sou um homem de pouca
fé, mas hoje, que te leio, quero acreditar que me ouves, ainda que não saiba se
eventualmente, de alguma forma, me responderás.
Dadas todas as incertezas da vida, e sem saber para onde me
levam as marés do tempo, despeço-me num até já porque o adeus fere-me e
remete-me novamente à tua despedida, o dia em que essa chaga abriu e começou a alastrar
em mim como uma peste.
Com amor,
Até já!"
Dobrando novamente a carta humedecida pelas lágrimas que lhe
foram caindo, guardou-a novamente no bolso. Desse mesmo bolso tirou uma pequena
caixa de fósforos, acendeu uma vela e despediu-se. Não tinha dado três passos
quando voltou para trás, retirou a carta do bolso e deixou-a em cima da vela
para que ali se consumisse.