terça-feira, 28 de setembro de 2010

Memórias de café II...

Há um cigarro a consumir-se, libertando um rasto de fumo, numa dança vertical…observo-o até que se dissipe e volto a olhar para o cinzeiro onde ele está pousado. O cinzeiro tem poucas beatas, o dia está ainda a começar ao som da máquina de café que trabalha ao ritmo fulminante.
Entram e saem muitas pessoas, pessoas diferentes, pessoas carentes, pessoas decentes, pessoas indecentes…Todo o tipo de gente que me agrada, que adoro, que ignoro, que desgosto e que odeio. Não pedi nada ainda e observo-os sem qualquer pudor. Apetece-me ver as pessoas, apetece-me ver o que fazem e como o fazem.
A maioria bebe café, tomam-no sem trocar um único olhar com alguém. Entram de olhos no chão, sentam-se ao balcão, pedem com os olhos postos no jornal, pagam de olhos postos na mão cheia de trocos e voltam a sair de olhos no chão.
Alguns levam o seu tempo olhando a vitrina dos bolos, escolhendo o que querem para o seu pequeno-almoço. Irrita-me ouvir a palavra “adoçante” acompanhada de o nome de algum bolo. É daquelas coisas que me dá vontade de chegar perto da pessoa e perguntar “Mas porquê?”, enquanto a abano. Sinto, ainda, que prefiro voltar para o meu lugar antes de ouvir a resposta.
O cigarro continua a queimar, a cinza não caiu ainda no cinzeiro e faz uma ligeira curva, volto a centrar-me naquela dança vertical. A dona do cigarro continua de olhos postos no jornal, lê a secção dos classificados, que buscará? Emprego? Casa? Acompanhante?
Eu não busco nada, não sei o que buscar. Talvez um pouco de alento, inspiração, motivação? O inconformismo aumenta e dor também. É inevitável, o inconformista não se doer pelos outros, por mais distantes que sejam.
Aumentam ao volume da televisão, paira a palavra crise pelo ar e olho em volta: ao balcão, alguém está a beber um bagaço de uma só vez e contorce o rosto, junto à máquina de tabaco um jovem bastante gordo trinca, com máximo prazer, uma bola de Berlim, enquanto a mãe lhe diz para ter cuidado para não deixar cair creme na camisola nova. Ninguém liga, ou então já se acostumaram ao tema, que não passa de uma comichão chata (como a típica comichão dos homens que é tão lixada quando aparece, mas totalmente esquecida quando desaparece) que aparece e desaparece, fazendo com que seja possível criar todas as possíveis artimanhas para viver na corda bamba, para construir na falésia que ameaça desmoronar-se.
Pedi um café, está quente!
Na mesa ao meu lado, sentou-se um grupo, não muito mais novos do que eu. Estariam a chegar de uma noitada. Por onde terão andado? Que arrependimentos, ou não, trarão de uma noite levada ao limite? Lembro-me dos meus amigos, cada um correndo o seu caminho, ou procurando um caminho para seguir, antes que não haja pernas para andar. Passo a mão no sítio onde me apareceram os primeiros cabelos brancos e suspiro, cansado…
Não deito açúcar, é amargo como gosto, o seu sabor natural! Está quase no fim, o cigarro, como um CD, nas suas últimas faixas, por vezes, as mais calmas…
Entrou um arrumador de carros, não vem comer nem tomar nada, vem cravar a quem deixa o maço em cima da mesa e dirige-se à rapariga que lia os classificados. Ela dá-lhe um cigarro e acaba por pegar no seu, que estava quase morto. Senti-me angustiado, aquela dança tinha acabado por ali. Tudo se tinha consumido e o mais angustiante é que o fim havia sido forçado, em duas longas passas, havia sido apressado e, para colmatar, esmagado, contra o fundo do cinzeiro.
O despertar é duro, até onde estará o meu tempo consumido…até onde? Até onde…


António Campos Soares

4 comentários:

Fernando Oliveira disse...

Respect.

António Campos Soares disse...

Grato!

Anónimo disse...

Este texto é tão teu...
tudo o que
sentes,
observas,
reflectes,
sussurras,
enfrentas e
questionas... estou mesmo a ver-te em cada momento...

Muito bom, não pares...
[[[*]]]

António Campos Soares disse...

Soube-me muito bem escrever este texto, desta forma...Foi como um desabafo, um pensamento que se alargou por uma noite!

[[[@]]]