quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Músicas para Escrever LVI, Mumford & Sons - Awake My Soul



Era o fim de tarde de um dos últimos dias quentes de verão, sentou-se na laje do túmulo que nunca quis ver edificado, tirou um papel do bolso e leu-lhe aquele carta, a sua última carta, a carta que queria que fosse lida, que lhe queria enviar mas que, por infortúnio da vida, nunca lhe havia de chegar.


"Morreste-me demasiado cedo…

Como aquele infante nascido demasiado prematuro, que ninguém acredita que sobreviverá, mas sobrevive, e tu morreste-me!

A questão não se põe no quando, mas no facto de que não me deverias ter morrido.

As pessoas como tu não merecem morrer assim, cedo e em agonia. As pessoas como tu são genuínas, constituídas por uma matéria tão pura que se fossem escarnadas, laminadas, analisadas ao mais ínfimo dos pormenores, não lhes seria encontrada uma ponta de maldade ou qualquer tipo de mácula.

Morreste-me demasiado cedo, quando precisava de ti e porque ainda preciso. E se não me tivesses morrido, os meus monólogos não seriam tantos nem tão longos e o meu olhar não se perderia tanto na linha do horizonte à espera de ver-te chegar um dia, ou nas longas noites de insónia a imaginar como seria cada momento que passei se não me tivesses morrido.

Estou certo que todos teremos o momento de largar este corpo e eu não me atreveria a pedir que ficasses cá para sempre, pois, isso seria sobrecarregar-te de sofrimento. Se não me tivesses morrido, apenas pediria que partisses um pouco antes de mim porque, se já sofri uma vez com a tua partida, voltaria a sofrer, no entanto, de maneira diferente porque teria vivido muito mais ao teu lado.

Aquilo que pensámos ser um enorme círio, cujo pavio poderia arder durante uma vida, tornou-se numa pequena vela que fulminantemente se consumiu.

Morreste-me demasiado cedo porque és insubstituível. Cada pessoa é única, no entanto, e concordarão comigo, há pessoas que, apesar da sua característica una, podem ser substituídas, dependendo das suas circunstâncias, mas tu és insubstituível, não importando o lugar, o dia ou a circunstância.


Morreste-me demasiado cedo ontem, hoje e amanhã porque a tua morte é uma ferida sem cura que vai infeccionando cada vez mais com a alastrar do tempo e se retirar a minha camisola verás que tenho já meio corpo com chagas abertas. Vou acalmando a minha dor lambendo essas chagas com memórias, mas essa cura não se tem mostrado eficaz.

Morreste-me demasiado cedo e a incerteza de saber se me ouves enquanto te leio esta carta também me corrói porque sou um homem de pouca fé, mas hoje, que te leio, quero acreditar que me ouves, ainda que não saiba se eventualmente, de alguma forma, me responderás.


Dadas todas as incertezas da vida, e sem saber para onde me levam as marés do tempo, despeço-me num até já porque o adeus fere-me e remete-me novamente à tua despedida, o dia em que essa chaga abriu e começou a alastrar em mim como uma peste.



Com amor,

Até já!"


Dobrando novamente a carta humedecida pelas lágrimas que lhe foram caindo, guardou-a novamente no bolso. Desse mesmo bolso tirou uma pequena caixa de fósforos, acendeu uma vela e despediu-se. Não tinha dado três passos quando voltou para trás, retirou a carta do bolso e deixou-a em cima da vela para que ali se consumisse.




terça-feira, 4 de junho de 2013

Músicas para Escrever LV, Collapse Under The Empire - Captured Moments

Hoje tive que ouvir música e escrever, imperativamente. São demasiado os infortúnios que necessito de expurgar do meu pensamento e tantos as vontades e visões que tenho que guardar bem gravadas, ainda que em cicatrizes para nunca me esquecer o que representam porque as cicatrizes são mais permanentes e incógnitas que a tatuagens.
As minhas noites oscilam entre pesadelos mórbidos e melancólicos e sonhos que desejava serem realidade. A ironia é que não quero acordar nem dos pesadelos, nem dos maravilhosos sonhos que com eles se alternam. Os pesadelos, quero resolvê-los e dar-lhes um final digno e os sonhos não os quero abandonar, ao ponto de não saber se, por vezes, são realidade ou imaginário e, nesses casos, apodera-se de mim a angústia quando desperto para dita realidade, que também não prefiro em detrimento dos pesadelos.
Num dos pesadelos paguei com o consentimento da minha lobotomia uma vida que queria salvar de um contínuo decepamento. E a anestesia, os perder dos sentidos era real que acabei por perecer num túnel numa manhã de nevoeiro e não terá sido um parecer no seu lato sensu, mas sim num stricto sensu que me terá abandonada num hospício perdido, de onde um dia me hei-de resgatar. Outras vezes a visão é demasiado trôpega e cansada que me encontro em lugares desconhecidos, estando só em cenários de um pós-apocalipse que levou para longe todos aqueles que conheço e não quero despertar, pois naquele pesadelo, ainda que assim o seja, consigo encontrar esperança para me perder na busca de alguém e, no oscilar da noite, essas personagens cruzam habilmente as fronteiras da noite que separam os sonhos dos pesadelos.
Eu sou o homem de lugar nenhum que busca incessantemente o bem e o mal, o infortúnio e a graça, o ódio e o amor, a dor e a cura, a escassez e a abundância, as chagas e o bálsamo porque tenho uma necessidade imperante em sentir-me vivo e a dor faz parte desse processo, a imunidade cria-se assim, os objectivos e os caminhos que seguimos traçam-se assim.



domingo, 2 de junho de 2013

Memórias de Café XV - O Nero

O meu avô António era caçador!
Pelo menos tinha sido mas a licença caducou. Um dia disse-lhe que gostava de ir à caça com ele, mas nessa altura a doença já o tinha tornado débil e nem tínhamos cão de caça. Ainda assim ele fez-me a vontade: renovou a sua licença e arranjou um coelheiro de caça, o Nero.
Não fomos muitas vezes à caça, naquele ano a doença já tinha tido alguns avanços. Ainda assim ele treinou o Nero e fomos caçar algumas vezes, mas nunca conseguimos nada. Hoje entendo que aquilo foi uma bondade para satisfazer uma vontade.
Entretanto, voltou para o hospital com o agravar da doença, mas  Nero continuava connosco. Era um cão de pequeno porte castanho claro, muito afável e companheiro.
Quando o meu avô teve uma recaída inesperada e teve que ser internado, não durou muitos dias para que o Nero arranja-se maneira de quebrar a sua corrente e fugir. Depois de algumas semanas o meu avô voltou para casa e ficou desgostoso quando soube da notícia. Todos os dias ia ao fundo do quintal e olhava com tristeza para a casota vazia. Mas não tardou mais de uma semana e um vizinho encontrou o Nero a vaguear a uns quilómetros de casa, na zona onde costumávamos caçar. Que alegria foi aquele reencontro.
No verão desse ano, o meu avô voltou a piorar, ao ponto de ser novamente internado já sem esperanças de voltar a casa e poucos dias antes da sua partida, o Nero voltou a arranjar maneira de escapar...desta vez para nunca mais voltar!
Tenho-me lembrado disso ultimamente, pois agora temos um cadelinha lá em casa, a Sura, que está sempre a farejar no meio dos arbustos à procura de alguma coisa. Tem bom faro!
Ias gostar muito de a conhecer!

Um abraço eterno e até já =)


Músicas para Escrever LIV, Fever Ray – If I Had a Heart


Ele nunca disse nada, não porque as palavras fossem poucas ou porque sofresse de mudez em determinados momentos. Não disse, nem dizia, porque, no seu entendimento, não deveria afectar as decisões ou as acções das pessoas que o rodeavam. Este era o seu meio de respeitar a liberdade total de quem conhecia.
O seu silêncio de liberdade era considerado muitas vezes como uma apatia profunda e estagnação emocional. Na verdade, tinha os seus momentos de apatia e solidão por ser incompreendido, no entanto, também compreendia as pessoas e estava consciente da condição de repressão sentimental. Ele próprio havia diagnosticado essa patologia em si mesmo.
Muitas vezes não falava porque não lhe perguntavam e não se lembrava de que às vezes era necessário ceder.
Muitas vezes não falava porque algo o prendia bem lá dentro.
Mas ele não era apático. Ele adorava as pessoas e queria conhecer sempre mais pessoas e, de facto, conheci-as, mas os quilómetros de distância eram uma constante sempre que conhecia alguém. Muita gente pensaria talvez que seriam as pessoas erradas, mas isso foi algo que nunca lhe ocorreu. Ele próprio havia sido desde sempre uma deambulante, aqui e ali, sem um lar fixo, pois qualquer sofá poderia ser o seu lar perfeito.
Um dia apoderou-se dele uma enfermidade gravíssima e foi aí que tudo começou a desabar, tornou-se um desgraçado mendigo de emoções que não sabia processar ou expressar. O seu mundo já não era o mesmo. Uma fobia social foi-se apoderando dele. Já não falava em público. Já não caminhava de cabeça erguida. Os seus projectos já não saiam mais do pensamento, a vontade estava perdida ou esquecia-se sempre dele para onde quer que fosse e isso era o que mais o dilacerava e os seus olhos estavam baços como nunca haviam estado, tinham perdido o brilho de tantas lágrimas que tinham salgado a pele áspera do seu rosto e, em consequência disso, a visão havia-se deturpado, vendo apenas sombras em alguns momentos.
Um dia, estando a passear numa falésia, tentando encontrar respostas, aproximou-se demasiado do limite e, esquecendo a sua vontade viver, caiu e não mais foi visto. Quero acreditar que encontrou conforto naquele mar imenso tão salgado quanto as suas incontáveis lágrimas.





segunda-feira, 8 de abril de 2013

Músicas para Escrever LIII, Fever Ray - Concrete Walls


O local ao qual chamava lar é agora um ambiente funesto que gera asfixia. Temo que em breve os que nela habitam comecem a perecer vítimas de apoplexia induzida ou de venenos letais cada vez mais semeados em lugares onde costumávamos fazer picnics e passeávamos em tardes de Verão. 
Em tempos vivíamos felizes e dedicados por mantê-lo assim, talvez, as minhas memórias são ainda reduzidas, mas lembro-me de ter sido feliz e ter acreditado num futuro. Hoje esse lugar é apenas uma memória e a felicidade encontra paredes sempre que tenta mover-se. A felicidade dos que ainda vivem neste lugar não é felicidade mas, sim, apenas uma memória daquilo que foi a felicidade como a sensação da presença de um ente querido nos primeiros tempos após o seu último suspiro. Mas um dia tudo isso desaparecerá totalmente também…E nesse dia nem os fantasma vão querer ficar mais, nem um minuto que seja. 
Já não chamo lar a esse local! Também não tenciono desenvolver por ele ou pelos seres vis e infames, que o mitigaram, uma espécie de Síndroma de Estocolmo como já terá acontecido a algumas pessoas. Este lugar ao qual chamei lar é um local onde a esperança se encontra em estado vegetativo e não me espanta que, sem escrúpulos, dêem ordem para que a máquina da qual depende seja desligada. 
O local ao qual chamava lar já não é o meu lar. É agora um pequeno apartamento, semelhante a uma sala, pelo qual pago uma renda demasiado cara. Um espaço frio que já não reconheço e me provoca insónias ou pesadelos, quando penso que afortunadamente adormeci. Aqui o tempo passa como noutros sítios mas sem rumo e a cada dia a angústia cresce porque o que queremos alcançar está muito distante ainda e o tempo que teremos para desfrutar será o resto de uma vida miserável. 
Este é a minha carta de despedida para uma partida cada vez mais inevitável, para a qual só comprarei um bilhete de ida sem regresso. 
Pobre local ao qual chamei lar que em breve não serás mais do um deserto com fronteiras litorais formadas por falésias de onde mais nenhuma nau partirá com optimismo ou saudade, embaciando os olhos dos seus corajosos tripulantes.




quinta-feira, 28 de março de 2013

Músicas para Escrever LII, God Is an Astronaut - Shining Through

A tormenta entre a razão e as matérias que envolvem a emoção é tudo o que resta de um ser que hoje não é mais do que um sopro errante. Desde sempre este dilema, que já foi e é comum a muitos outros como eu, me tem vindo a forjar estigmas.
Já não sei se existo mais para a vida para a qual acordo todos os dias ou para os sonhos que anseio a cada momento que tento adormecer. A vida é para mim cada vez mais diluída, mais imperceptível, mais fosca, como um livro escrito à mão cuja tinta se vai diluindo debaixo de uma chuva torrencial que as minhas lágrimas vão acentuando porque são elas a razão de toda esta precipitação absurda sobre este meu mundo de amorfia, paralisação e desassossego.
Já os sonhos, a cada noite que adormeço, apresentam-se mais nítidos e reais. São perceptíveis os sons, os rostos começam a deixar-me conhecê-los e os habitantes desses sonhos, talvez um mundo paralelo que sempre quis conhecer, deixam agora que me aproxime e que lhes possa tocar, como prova da sua real existência.
Talvez por passar demasiado tempo acordado, assimilei esta circunstância à qual chamam vida a um mundo real e talvez seja demasiado tarde para mudar as coisas e aquela voz que me acordou e que tento recordar todas as noites tarda em chegar. No entanto, a minha esperança em ouvi-la de novo continua.
Brevemente será hora de adormecer e sonhar, vivendo tranquilamente.




terça-feira, 12 de março de 2013

Músicas para Escrever LI, Mono - Pure as Snow (Trails of the Winter Storm)

05h31m: Ainda tenho duas horas para dormir.

07h30m: Depois de ter desligado o despertador após um anunciante one, two, three, four, voltei a adormecer (constantemente peço mais cinco minutos ao despertador, mas hoje, sem querer desliguei-o).

08h04m: Acordei cerca de meia hora depois com uma voz feminina muito dócil que sussurrou o meu nome, “António!”, uma única vez. Abri os olhos lentamente e não era ninguém, quando julguei ter sentido uma respiração bem junto do meu rosto. Olhei novamente e não havia mais ninguém ali no quarto.

08h08m: Abri a janela e levantei-me preguiçosamente para mais um dia em busca de respostas, conclusões, soluções…talvez algumas considerações também.

Não sei se aquela voz misteriosa seria a minha consciência a relembrar-me que tinha que acordar para não faltar às aulas. Tenho a certeza que não! A voz da minha consciência é parecida ou igual à minha, é aquela voz que ouço nos meus monólogos constantes e plurilingues, na maioria das vezes, que ocorrem no banho, quando conduzo ou quando tento combater as insónias.
A verdade é que gostei daquela voz, ainda a ouço constantemente, agora mesmo, como um eco porque se repete vezes e vezes sem conta. Quero voltar a ouvi-la, mesmo que não conheça a forma física que a pronuncia.
Talvez esteja a enlouquecer. Talvez um pouco mais. E a loucura total tem como pano de fundo vozes assim? Se sim, então, é para lá que quero caminhar.
Boa noite, noctívagos e noctívagas. Não digo até amanhã, mas até que essa voz me volte a despertar.




quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

"A Morte do Autor" (Barthes, 1987)


O nascimento do leitor tem de pagar-se com a morte do Autor.”
Há já vários anos que o Autor reflectia sobre as palavras de Roland Barthes, tentando encontrar nelas algum sentido para a sua moderna existência e para o seu futuro, ora trémulo ou pungente, ora corroborado ou exaltado. Todos esses anos, sob reflexões sobre essas palavras de Barthes, foram também os necessários para o Autor produzir a sua última obra, que seria a mais brilhante e aclamada. Este foi o tempo profícuo da sua existência, da sua vida, talvez da sua longa linhagem, da qual não contarei já o desfecho.
Desde o final da Idade Média, com o Renascimento e os seus ideais humanistas antropocêntricos de afirmação do indivíduo, com o racionalismo francês, com a Reforma Protestante, com o empirismo inglês, com o positivismo, instalou-se no mundo ocidental a família do Autor, uma estirpe centrada no “prestígio pessoal do indivíduo”. É uma família com imensos membros que começaram a afirmar-se e a vigorar, um pouco por todo o lado, detendo a autoria de tudo o que iam produzindo, criando uma cisão com o anonimato ou colectivos anteriores dos apreciados cancioneiros.
A verdade é que ainda hoje os vários membros deste clã Autor reinam na história da literatura, nas biografias dos escritores, em revistas, em jornais, em entrevistas, nas críticas devido à incapacidade dos críticos em dissociar a obra e a pessoa que a produz, na feroz necessidade de encontrar na obra os gostos, os ideais, as paixões, a pessoa, o carácter autobiográfico do Autor, levando a que a imagem da literatura destes tempos seja “tiranicamente centrada no autor”.
De facto, o Autor detinha, na sua enorme mansão, um grande espólio de recortes, registos de tudo aquilo que havia sido centrado nele: entrevistas, resenhas e críticas literárias, biografias oficiais e não oficiais, autorizadas e não autorizadas, artigos de jornais ou de blogues, estudos que entrelaçam o escritor e a obra. Tudo isto estava num mausoléu que criou, como um santuário, o seu próprio santuário, que ele próprio venerava mas que, nesses últimos tempos, pensando nas palavras de Barthes, havia descuidado e o pó amontoava-se sobre todos aqueles livros, a luz ia fazendo desaparecer as letras dos recortes, assim como a humidade os ia fazendo apodrecer.
Anteriormente, o Autor queria ser ele próprio conhecido através da escrita que considerava sua, de uma linguagem que também pensava ser sua, de tudo que cria ser centrado em si. Mas a escrita não era sua, a linguagem também não o era. Nada era seu, a não ser a mão que escrevia e a vontade! Primeiro estranhou: o seu mundo, até ali tão idílico, aparentemente inefável e tão seu, abalou-se, desmoronou-se, desconstrui-se. Depois entranhou-se: a sensação era boa, sentia uma liberdade correr em toda a sua inspiração. A linguagem passou a falar por ela própria e não o Autor, que sentia a magia de desaparecer, como um mago, deixando apenas um pouco de magia que daria liberdade total a quem a recebesse. A performance descentralizou-se assim, passando do “eu” para a “linguagem”, dando seguimento à poética de Mallarmé: “suprimir o autor em proveito da escrita”. É isto que passa a ser importante para esse intitulado Autor que, assim sendo, já não é mais Autor, mas simplesmente aquele que escreve. Durante algum tempo, o Autor invejou Proust pelo sei feito de, ao invés de passar a sua vida para o romance, fazer da sua vida uma obra. Depois descobriu o seu próprio caminho.
Previamente, durante o Surrealismo viveu um período de eremitismo. A ideia de partilhar um texto com alguém, de experimentar uma escrita a vários fazia-lhe confusão, provoca-lhe náuseas por ter de misturar uma substância, que considerava tão sua, com a de outrem, que provavelmente nunca havia conhecido. Sentiu raiva com o contributo dos surrealistas “para dessacralizar a imagem do autor”, que fez do Autor aquele que simplesmente escreve, passando a linguagem apenas a conhecer o “sujeito” e não a “pessoa”. O Autor, isolado em sua ermida, sentia a dor de algo que considerava uma doença que acometia outros membros da sua estirpe e, esse foi um tempo diferente, não produziu nada.
Após esses tempos de isolamento, novas tendências vieram e o Autor ia ficando atento, no entanto, mantendo a sua distância, preservando a sua integridade de Autor. Continuava sem escrever, aumentava-lhe a angústia dessa solidão, desse individualismo, desse reconhecimento massivo impertinente em tudo aquilo que escrevia e do qual nunca conseguia dissociar-se. Mas, eis, que chegou o dia e muralhas de conceitos e ideias se demoveram para deixar entrar em si algo novo, algo conquistado por uma liberdade que no fundo, sem que o soubesse, lhe agradava. Nasceu em si, então, o scriptor. Começou a fazer sentido em si o aqui e o agora, ao invés de eternidades monótonas que com ele se arrastavam, como correntes das quais não conseguia libertar-se. Esse seu íntimo scriptor nasceu quando começou a escrever o seu texto, esse derradeiro texto de liberdade, que será delegada, de dimensões múltiplas, entre matrimónios e uniões de escritas variadas, que originam novas escritas, sem que nenhuma delas fosse contudo original, quando sem amarras oferecer o texto ao mundo. Assim, já não detém, como anteriormente, quando acerrimamente se afirmava como “o Autor”, paixões, impressões, sensações, sentimentos, ilusões, “mas sim esse imenso dicionário onde vai buscar uma escrita que não pode conhecer nenhuma paragem”.
O Autor, agora ancião, mas dotado de uma nova perspetiva plena de liberdade, sua e dos que receberem o texto que escreveu, já não procura impor-se à sua obra ou impor ao seu texto um último e derradeiro significado, castrando o desconstruir que possa vir a ser processado pelo leitor para deslindar o que lê, fazendo disso “coisa” do passado, dos seus antepassados retrógrados.
Após todos esses anos, o Autor encontra um herdeiro, que nunca imaginou vir a ter. Todo o seu individualismo e tentativas de exaltação levaram ao seu isolamento, a uma envelhecer solitário. Desconstruíram-se, então, ideias e pensamentos tidos como verdades absolutas e, assim, um texto passou a ser “feito de escritas múltiplas, saídas de várias culturas e que entram umas com as outras em diálogo, em paródia, em contestação.” No entanto, há um lugar, alguém onde tudo se encontra e esse alguém é o herdeiro do Autor, que passou a scriptor, o leitor, alguém que até li nunca tinha sido valorizado. É este leitor que dará vida ao escrito porque é para ele que, afinal de contas, o escrito conflui.
Terminado o seu texto, o Autor em tempos, agora scriptor, consciente da realidade e da liberdade que se propõe a delegar, após entregar o texto ao leitor, bebe o seu derradeiro cálice de licor onde acrescentou algumas gotas de cianeto porque “o nascimento do leitor tem de pagar-se com a morte do Autor”. Era uma bela tarde de primavera e o sol brilhava no horizonte. Na mesa onde se sentava, de frente para uma jardim que começa a ganhar imensas cores, restou uma carta que serviria de testamento e havia um único pedido:
“Por toda a felicidade e tranquilidade que a escrita me trouxe, pelo sentido que ela deu à minha débil existência, nestes derradeiros anos e pela companhia que me foi oferecida pelo scriptor, peço gentilmente que não tirem liberdade ao derradeiro texto que envio ao mundo, que quando lido será do leitor e não meu, e, ao invés de um nome, vigente durante séculos, que comigo quero enterrar, conste apenas o scriptor”.
O texto percorreu o mundo, em várias línguas até, como nunca havia acontecido, e, respeitando a último pedido de quem escreveu, sem que ninguém soubesse quem era o misterioso “o scriptor”, o texto foi desconstruído inúmeros vezes, deslindado pela milésima vez, lido vez sem conta porque ninguém sabia que paixões alheias procurar, que pessoas procurar. Afirmou-se o aqui e agora, rodeado de “sujeito” e não “pessoas”. Era um texto sobre a loucura e ninguém sabia se essa era a loucura do Autor, que ninguém conhecia, do scriptor, do “sujeito”, da “pessoa”, do leitor, de alguém. Era a loucura para quem quisesse vivê-la, para quem quisesse experimentá-la, interpretá-la à sua maneira e seria sempre diferente, dependendo do aqui e do agora, da circunstância da sua leitura.




António Campos Soares



Bibliografia específica

BARTHES, Roland – “A morte do autor”, O rumor da língua. Lisboa: Edições 70, pp. 49-53

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Músicas para Escrever L, Mono - The Battle To Heaven


"Car tous les hommes désirent d'être heureux: cela est sans exception. Quelques différens moyens qu'ils y emploient , ils endent tous à ce but. Ce qui fait que l'un va à la guerre, et que l'autre n'y va pas, c'est ce même désir qui est dans tous deux accompagné de différentes vues." 

Blaise Pascal


A vida é como um texto porque a língua – escrita ou não – é também uma forma de acção. Não é que todas as regras que envolvem a língua tenham que ser seguidas escrupulosamente porque, se deténs o conhecimento formal que é fundamental, podes reinventar.
Podes usar reticências ao invés de um ponto final. Podes escrever frases mais longas e fazê-las semelhantes a um sonho que queres prolongar ou a uma divagação que não queres abandonar e continuar... Podes fazer essas mesmas frases curtas! É contigo! Podes adulterar a ortografia, se assim entenderes, porque há palavras que ditas ou escritas de outra maneira, em alguma circunstância, te soam melhor assim, te fazem rir, te perpetuam aquele momento, te relembrar alguma pessoa – infelizmente agora não me estou a lembrar de nenhuma mas isso acontece! Podes jogar com as palavras porque, em determinado momento, uma mesa pode ter sido muito mais que uma mesa onde costumas jantar só e naquele exacto momento não estavas sozinho ou sozinha. Podes florear para criar cenários idílicos que pretendes levar ao mais ínfimo dos pormenores ou criar charadas de quem foste realmente ou de como apenas te representaste nas histórias que escreveste quando não o pudeste ser na realidade. Tudo isto porque, quando conheces bem, dominas ainda melhor. E aprende, aprende a cada dia e com cada palavra.
O importante é não deixar nada em suspenso, pelo menos para ti, que escreves o teu texto. As dúvidas não fazem bem porque são como cruzamentos duvidosos e muito mal sinalizados em que, enquanto decides avançar ou não, podes ser surpreso por alguma infelicidade, por isso, não fiques na dúvida e se, no final daquele parágrafo, deverias ter deixado reticência, ou por fraqueza não quiseste colocar um ponto final, ou se aquele pensamento, esquecido entre outras frases, deveria ter tido destaque e passado a uma intervenção tua, mesmo que sem deixa, certifica-te que isso não te passou em vão.
Não deixes frases inacabadas em que, na posterioridade, alguém perversamente possa alterar o sentido de alguma circunstância que te envolveu ou em que, com a melhor das intenções, te envolveste apesar do anonimato que injustamente te atribuíram no final da história quando alguém gritou vitória e te esqueceu.
Talvez a razão de muito mal-estar que nos mitiga seja mesmo a falta de coerência e sanidade que nos assoma quando deixamos pontas soltas em algo que, ainda não estando o nosso texto acabado, pensamos lá voltar para resolvê-las, no entanto, não o fazemos porque são tantas e nos esquecemos e quando está publicado o nosso texto já é tarde demais. FIM!





terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Músicas para Escrever XLIX, Agnes Obel - Over The Hill

Gostava de lá estar, over the hill!
Ver os meus sonhos de infância e ver o quanto me desviei ou aproximei de os realizar.
Over the hill a ver o pôr-do-sol tranquilamente esperando pela noite para contar as estrelas que, quando era criança, me diziam para não contar porque me isso me faria crescer tanto cravos nos dedos quantos as estrelas que contava.
Over the hill, fingindo ser aquilo que não sou mas que desejaria ter sido.
Over the hill, cruzando o limite de encontro a uma realidade que não tive.
Over the hill, perecendo tranquilamente e em silêncio sob o manto de estrelas que sonhei. Não conto cordeiros para adormecer, conto estrelas para me despedir!