quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

"A Morte do Autor" (Barthes, 1987)


O nascimento do leitor tem de pagar-se com a morte do Autor.”
Há já vários anos que o Autor reflectia sobre as palavras de Roland Barthes, tentando encontrar nelas algum sentido para a sua moderna existência e para o seu futuro, ora trémulo ou pungente, ora corroborado ou exaltado. Todos esses anos, sob reflexões sobre essas palavras de Barthes, foram também os necessários para o Autor produzir a sua última obra, que seria a mais brilhante e aclamada. Este foi o tempo profícuo da sua existência, da sua vida, talvez da sua longa linhagem, da qual não contarei já o desfecho.
Desde o final da Idade Média, com o Renascimento e os seus ideais humanistas antropocêntricos de afirmação do indivíduo, com o racionalismo francês, com a Reforma Protestante, com o empirismo inglês, com o positivismo, instalou-se no mundo ocidental a família do Autor, uma estirpe centrada no “prestígio pessoal do indivíduo”. É uma família com imensos membros que começaram a afirmar-se e a vigorar, um pouco por todo o lado, detendo a autoria de tudo o que iam produzindo, criando uma cisão com o anonimato ou colectivos anteriores dos apreciados cancioneiros.
A verdade é que ainda hoje os vários membros deste clã Autor reinam na história da literatura, nas biografias dos escritores, em revistas, em jornais, em entrevistas, nas críticas devido à incapacidade dos críticos em dissociar a obra e a pessoa que a produz, na feroz necessidade de encontrar na obra os gostos, os ideais, as paixões, a pessoa, o carácter autobiográfico do Autor, levando a que a imagem da literatura destes tempos seja “tiranicamente centrada no autor”.
De facto, o Autor detinha, na sua enorme mansão, um grande espólio de recortes, registos de tudo aquilo que havia sido centrado nele: entrevistas, resenhas e críticas literárias, biografias oficiais e não oficiais, autorizadas e não autorizadas, artigos de jornais ou de blogues, estudos que entrelaçam o escritor e a obra. Tudo isto estava num mausoléu que criou, como um santuário, o seu próprio santuário, que ele próprio venerava mas que, nesses últimos tempos, pensando nas palavras de Barthes, havia descuidado e o pó amontoava-se sobre todos aqueles livros, a luz ia fazendo desaparecer as letras dos recortes, assim como a humidade os ia fazendo apodrecer.
Anteriormente, o Autor queria ser ele próprio conhecido através da escrita que considerava sua, de uma linguagem que também pensava ser sua, de tudo que cria ser centrado em si. Mas a escrita não era sua, a linguagem também não o era. Nada era seu, a não ser a mão que escrevia e a vontade! Primeiro estranhou: o seu mundo, até ali tão idílico, aparentemente inefável e tão seu, abalou-se, desmoronou-se, desconstrui-se. Depois entranhou-se: a sensação era boa, sentia uma liberdade correr em toda a sua inspiração. A linguagem passou a falar por ela própria e não o Autor, que sentia a magia de desaparecer, como um mago, deixando apenas um pouco de magia que daria liberdade total a quem a recebesse. A performance descentralizou-se assim, passando do “eu” para a “linguagem”, dando seguimento à poética de Mallarmé: “suprimir o autor em proveito da escrita”. É isto que passa a ser importante para esse intitulado Autor que, assim sendo, já não é mais Autor, mas simplesmente aquele que escreve. Durante algum tempo, o Autor invejou Proust pelo sei feito de, ao invés de passar a sua vida para o romance, fazer da sua vida uma obra. Depois descobriu o seu próprio caminho.
Previamente, durante o Surrealismo viveu um período de eremitismo. A ideia de partilhar um texto com alguém, de experimentar uma escrita a vários fazia-lhe confusão, provoca-lhe náuseas por ter de misturar uma substância, que considerava tão sua, com a de outrem, que provavelmente nunca havia conhecido. Sentiu raiva com o contributo dos surrealistas “para dessacralizar a imagem do autor”, que fez do Autor aquele que simplesmente escreve, passando a linguagem apenas a conhecer o “sujeito” e não a “pessoa”. O Autor, isolado em sua ermida, sentia a dor de algo que considerava uma doença que acometia outros membros da sua estirpe e, esse foi um tempo diferente, não produziu nada.
Após esses tempos de isolamento, novas tendências vieram e o Autor ia ficando atento, no entanto, mantendo a sua distância, preservando a sua integridade de Autor. Continuava sem escrever, aumentava-lhe a angústia dessa solidão, desse individualismo, desse reconhecimento massivo impertinente em tudo aquilo que escrevia e do qual nunca conseguia dissociar-se. Mas, eis, que chegou o dia e muralhas de conceitos e ideias se demoveram para deixar entrar em si algo novo, algo conquistado por uma liberdade que no fundo, sem que o soubesse, lhe agradava. Nasceu em si, então, o scriptor. Começou a fazer sentido em si o aqui e o agora, ao invés de eternidades monótonas que com ele se arrastavam, como correntes das quais não conseguia libertar-se. Esse seu íntimo scriptor nasceu quando começou a escrever o seu texto, esse derradeiro texto de liberdade, que será delegada, de dimensões múltiplas, entre matrimónios e uniões de escritas variadas, que originam novas escritas, sem que nenhuma delas fosse contudo original, quando sem amarras oferecer o texto ao mundo. Assim, já não detém, como anteriormente, quando acerrimamente se afirmava como “o Autor”, paixões, impressões, sensações, sentimentos, ilusões, “mas sim esse imenso dicionário onde vai buscar uma escrita que não pode conhecer nenhuma paragem”.
O Autor, agora ancião, mas dotado de uma nova perspetiva plena de liberdade, sua e dos que receberem o texto que escreveu, já não procura impor-se à sua obra ou impor ao seu texto um último e derradeiro significado, castrando o desconstruir que possa vir a ser processado pelo leitor para deslindar o que lê, fazendo disso “coisa” do passado, dos seus antepassados retrógrados.
Após todos esses anos, o Autor encontra um herdeiro, que nunca imaginou vir a ter. Todo o seu individualismo e tentativas de exaltação levaram ao seu isolamento, a uma envelhecer solitário. Desconstruíram-se, então, ideias e pensamentos tidos como verdades absolutas e, assim, um texto passou a ser “feito de escritas múltiplas, saídas de várias culturas e que entram umas com as outras em diálogo, em paródia, em contestação.” No entanto, há um lugar, alguém onde tudo se encontra e esse alguém é o herdeiro do Autor, que passou a scriptor, o leitor, alguém que até li nunca tinha sido valorizado. É este leitor que dará vida ao escrito porque é para ele que, afinal de contas, o escrito conflui.
Terminado o seu texto, o Autor em tempos, agora scriptor, consciente da realidade e da liberdade que se propõe a delegar, após entregar o texto ao leitor, bebe o seu derradeiro cálice de licor onde acrescentou algumas gotas de cianeto porque “o nascimento do leitor tem de pagar-se com a morte do Autor”. Era uma bela tarde de primavera e o sol brilhava no horizonte. Na mesa onde se sentava, de frente para uma jardim que começa a ganhar imensas cores, restou uma carta que serviria de testamento e havia um único pedido:
“Por toda a felicidade e tranquilidade que a escrita me trouxe, pelo sentido que ela deu à minha débil existência, nestes derradeiros anos e pela companhia que me foi oferecida pelo scriptor, peço gentilmente que não tirem liberdade ao derradeiro texto que envio ao mundo, que quando lido será do leitor e não meu, e, ao invés de um nome, vigente durante séculos, que comigo quero enterrar, conste apenas o scriptor”.
O texto percorreu o mundo, em várias línguas até, como nunca havia acontecido, e, respeitando a último pedido de quem escreveu, sem que ninguém soubesse quem era o misterioso “o scriptor”, o texto foi desconstruído inúmeros vezes, deslindado pela milésima vez, lido vez sem conta porque ninguém sabia que paixões alheias procurar, que pessoas procurar. Afirmou-se o aqui e agora, rodeado de “sujeito” e não “pessoas”. Era um texto sobre a loucura e ninguém sabia se essa era a loucura do Autor, que ninguém conhecia, do scriptor, do “sujeito”, da “pessoa”, do leitor, de alguém. Era a loucura para quem quisesse vivê-la, para quem quisesse experimentá-la, interpretá-la à sua maneira e seria sempre diferente, dependendo do aqui e do agora, da circunstância da sua leitura.




António Campos Soares



Bibliografia específica

BARTHES, Roland – “A morte do autor”, O rumor da língua. Lisboa: Edições 70, pp. 49-53

Sem comentários: