terça-feira, 27 de novembro de 2012

Adérito, O Augusto

Adérito, O Augusto (* 27.11.1960 - † demasiado cedo)

Não conheci muito deste homem em vida. Eu era uma criança e o fatídico destino ditou que a sua permanência na minha vida seria curta, demasiado curta. E foi isso que aconteceu, para meu pesar. Conheci-o mais profundamente anos volvidos sobre a sua partida e, ainda assim, era aquele tio que eu não largava.
 Toda a minha família foi brindada com muita paciência para aguentar a minha infância, perante todas a minhas questões e observações – e que o confirmem os meus pais, as minhas avós, o meu tio Quim ou o meu tio Zé de Brito, os meus padrinhos - mas o tio Adérito, um dos irmão do meu pai, era extremamente paciente, o que mais se ria, o que mais alinhava, o que me dizia "Carago, tu és mais chato que a putaça" e me pedia sempre para continuar depois de me dar um cachaço. Cedo, ainda antes de eu ter nascido, o tio Adérito emigrou para a Suiça e apenas muitos anos depois percebi que isso não foi uma simples necessidade financeira, mas sim uma necessidade para se tentar afastar do que o mitigava por cá e o terá mitigado por lá também, pelo que fui conhecendo.
Quando cá vinha, eu não o largava. Passava os dias com ele e, apesar do seu problema, os meus pais confiavam nele e muito lhes agradeço por não me terem privado dessa convivência. O tio Adérito, quando estava cá, vivia com a minha avó Adília e sempre que eu ia para lá, queria dormir com ele. A imaginação do tio Adérito era enorme e eu adorava ouvi-lo contar-me histórias. Raras eram as vezes em que, estando eu em casa da avó Adília, ele não passava a noite em casa. Quando não passava, eu perguntava-lhe onde tinha ido e ele, pondo-me a mão no ombro e fixando os olhos no chão, respondia-me "fui para os micróbios". Na minha pueril inocência não percebia o que aquilo queria dizer mas também não ficava a remoer muito na sua resposta e talvez não visse mal em tal coisa.
Passou muito tempo sem que ele tivesse vindo da Suiça, ou de algum centro de reabilitação (mas isso eu não sabia) para uma visita e, um dia, comentava com as minhas primas gémeas que seria boa ideia ligar para o "Ponto de Encontro" porque tinha saudades dele e todos concordámos. Estávamos a conversar na cozinha da velha casa da avó Adília e momentos depois vi-o entrar pela porta da cozinha com um sorriso enorme. Provavelmente esse era o motivo para a família estar ali toda reunida, mas como a minha família sempre foi unida, nada me faria prever a sua chegada e para mim foi uma surpresa enorme. Os dias que seguiram passei-os lá. Andava o dia inteiro com o meu querido tio Adérito. Não me negava nada: um ovo de chocolate ali, uma pastilha elástica acolá. Apesar de andar sempre teso por causa do vício, guardava sempre uma moeda no bolso para me mimar. Um dia à noite, antes de adormecer, perguntei-lhe se voltaria para a Suiça e ele disse que tinha vindo de vez e que, quando eu fosse maior, me explicaria tudo.
 Não sei quanto tempo terá passado depois desses dias e também não tenho mais memórias dele. Os meus pais disseram-me que afinal ele emigraria de novo com uma namorada para a Alemanha, mas não passou do Hotel do Gerês, onde vitimado pelo seu maior vício e, sofrendo uma overdose, acabou por ser levado para o hospital de Guimarães. Aí viria a falecer, depois de alguns dias de agonia pedindo desculpa por todo o sofrimento que fez causar a todos os que o rodeavam, prevendo que aqueles seriam mesmo os seus últimos dias de vida. Foi essa a última notícia que tive dele.
Havia, na velha casa da minha avó Adília, um sótão cheio de tralhas de toda a gente e eu costumava brincar lá com a minhas primas. Descobríamos sempre algo novo para vasculhar e engendrar novas brincadeiras. Mais de dez anos depois da morte do tio Adérito, para que o telhado da casa da minha avó pudesse ser restaurado, já que quando chovia muito entrava água, decidiram limpar o sótão. Foi então que descobri as coisas do tio Adérito: centenas de fotografias de todos os sítios por onde tinha passado e postais, muitos postais que ia recebendo, uma caixa cheia de cartas, que há pouco tempo decidi ler e eram correspondências entre o tio Adérito e o meu pai cheias de confidências, preocupações, desabafos e palavras de coragem do meu pai, muitos livros (Jean Ray "O Leito do Diabo", Franz Kafka "Amerika", Friedrich Nietzsche "Assim Falou Zaratrusta", entre outros que nunca tinha encontrado entre as prateleiras do resto da família) em várias línguas já que o tio Adérito era poliglota, cassetes em grande número (Nina Hagen, Dire Straits, Prince) e outros objectos pessoais dele que felizmente guardei. Caso eu não estivesse lá no dia das arrumações, tudo estaria provavelmente perdido e eu não o teria conhecido melhor. Não julgo o resto da família, porque há diferentes perspectivas de mágoa e sofrimento, mas pareceu-me, naquele minha visão de criança em que tudo se guarda, que ninguém estava interessado em guardar as suas coisas, mas poderá ter sido apenas uma mera impressão minha. Mas o meu pai, que estava comigo, não teve nenhuma atitude de repreensão ou algo que se parecesse ao ver-me pôr todas aquelas coisas do seu irmão na mala do carro. Na verdade, não soube o que lhe terá passado pela cabeça.
 No meio de todas as cartas que trocava com o meu pai e junto a outros objectos pessoais do tio Adérito encontrei muitas fotos minhas, que o meu pai lhe ia enviando ou outras que ele ia tirando comigo. Os meus pais contam-me que uma vez vim com ele sozinho da Madeira para Joane e eu estava doente. Cheguei bem, chegámos bem! "Que aventura que foi aquele episódio", dizem constantemente os meus meus pais. Apesar de tudo, sempre que ouço essa história nuca sinto qualquer quebra de confiança no meu tio pela parte dos meus pais. Tinha um problema grave mas era um grande homem, era leal, apesar da fraqueza.
As outras fotografias que vou vendo, excluindo algumas duvidosa e que me enchem de raiva, mostram um homem feliz, jovem, aventureiro e, de certo modo, com muitos momentos de vida invejáveis. Que pinta que o meu tio tinha, penso eu muitas vezes. Tirava fotos espectaculares, andava de mota para todo o lado e chegou a vir para Portugal algumas vezes nela. Mas o vício levou-o a desfazer-se da mota, da câmara fotográfica, da casa e de muitas outras coisas que o terão feito feliz e nem tempo teve para me contar mais da suas histórias.
Haverá por aí muitas histórias semelhantes entre inúmeras famílias e não pretendo reclamar exclusividade, apenas quero alertar. Quero que vivam mais e que façam mais gente feliz por muito mais tempo, que não se deixem fraquejar e acabar miseravelmente, que não sejam egoístas. Tio Adérito, apesar da tua fraqueza, que te impôs um fim miserável, guardo apenas as melhores memórias talvez por naquele tempo ser uma criança, e não serei o único, assim o espero. Que esta tua história possa salvar gente e acredito que o fará.
Adérito, O Augusto que, acabando de maneira miserável, traído pela tua maior fraqueza quando não quiseste ouvir quem te queria, deixaste, ainda assim, gloriosas memórias!
Este seria o teu 52º aniversário e certamente estaríamos felizes, juntos em algum sítio...De qualquer maneira, Parabéns, tio Adérito!
Um abraço eterno do sobrinho mais chato de todos!

1 comentário:

Raquel disse...

Primo, magnifico....kd lia este lindo texto, várias recordações me vinham à memória. Confesso que tb são poucas, mas boas....Ele era uma Homem espetacular...Mts parabens PADRINHO:)mts vezes penso em ti.estarás sempre cmg no meu coração assim como os meus pais.....Espero k estejas juntinho a eles.....
OBRIGADO PRIMO POR TEREM ESCRITO ISTO.