No dia da morte de cada
ser humano, antes de se ir para onde quer que seja que as crenças de
cada um orientam e prometem em vida, cada um de nós, sem excepção,
após inevitavelmente abandonar a sua vulnerável massa física outrora movida
por necessidades, vontades, sentimentos, desejos, aspirações,
deveria ser confrontado, de bata e bisturi, com o seu cadáver,
talvez ainda quente para que nada passasse em vão.
Seria um momento de
verdade, cada um fazer a sua própria autópsia:
quantas memórias terão
ficado guardadas no sistema límbico? quantos remorsos e
arrependimentos ainda vaguearão por lá? quantas sensações de frio
e de calor? quantas vozes e palavras terão escutado ou ignorado os
ouvidos? quantos segredos por esses mesmos ouvidos terão entrado?
quantas coisas belas ou
angustiantes terão vistos os olhos? quantas lágrimas terão lavado
o rosto? quantas fragrâncias terá sentido o nariz?
quantos aromas terá
experimentado a língua?
quantas palavras terá
proferido a boca? quantas feridas terão curado ou espezinhado essas
palavras?
quantas vezes terá
batido o coração movido por fortes sentimentos ou quantas vezes
terá sido dilacerado? haverá alguma ferida aberta ou tudo estará
cicatrizado?
quantos gritos terão
soltado os pulmões? gritos de angústia, de raiva ou de exaltação?
quantas vezes se terá o
estômago contorcido pelo nervosismo, pela hesitação, pelo medo?
quantas hemorragias
internas provocadas por factores daqui e dali?
quantas cicatrizes
ornamentarão o corpo e a história a elas associada?
quantos corpos terão
tocado as suas mãos? que partes de cada corpo terão percorrido? com
que propósito?
quantos quilómetros
terão percorrido os pés para alcançar sonhos?
[...]
E, no final, depois de
dissecada toda uma vida, aí, sim, seria hora de partir. As crenças
estariam mudadas, talvez, um novo destino poderia ser escolhido ou
talvez não, mas algum novo tipo de consciência teria sido
despertado e, quem sabe, numa outra circunstância haveria vida
novamente, diferente.
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